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Linha Direta

Celac: Sem Brasil, Argentina quer ser o elo entre EUA e os regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba

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A Argentina assumiu nesta sexta-feira (7) a presidência rotativa da Celac, com a qual a China tem interesse num amplo acordo. O organismo, do qual o Brasil se excluiu em 2020, não condena os internacionalmente questionados regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba. Porém, ao se aproximar desses países, a Argentina automaticamente se afasta dos Estados Unidos, justamente quando mais precisa do apoio norte-americano para um acordo financeiro com o FMI.

Local da realização da reunião de cúpula do Celac, em San Antonio de Belen, na Costa Rica, em 2019.
Local da realização da reunião de cúpula do Celac, em San Antonio de Belen, na Costa Rica, em 2019. Foto: Reuters
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Reunidos em Buenos Aires, os ministros das Relações Exteriores e representantes de 32 dos 33 países da região deram à Argentina a condução rotativa da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).

"Trabalharemos no fortalecimento institucional da Celac como espaço de diálogo, sempre com a agenda aberta, convocando todos e escutando todas as vozes", anunciou o chanceler argentino, Santiago Cafiero, ao receber do México o mandato pelo próximo ano, até janeiro de 2023.

A Argentina propôs durante o seu ano de gestão 15 ações que vão da "recuperação econômica pós-Covid" à "melhora da situação das mulheres nos países membros", passando pela "transformação digital" e o "diálogo com sócios de fora da região".

Enquanto o chanceler argentino discursava, a oposição divulgava uma nota do PRO, partido liderado pelo ex-presidente Mauricio Macri e pela ex-ministra da Segurança, Patricia Bullrich, a política com mais alta popularidade no país.

Direitos Humanos

"A pretensão de exercer a presidência da Celac não pode permitir esquecer a exigência de alertas sobre a situação em matéria de Direitos Humanos em Cuba, Nicarágua e Venezuela", adverte a nota.

"O problema não é a Argentina assumir a Presidência da Celac. O trágico é que vai presidir um organismo com três membros que violam os direitos humanos, a liberdade e a democracia", afirmou à RFI o ex-chanceler argentino, Jorge Faurie (2017-2019).

A Celac foi criada em 2010, a partir da iniciativa do então presidente venezuelano Hugo Chávez, sob o argumento de que a Organização dos Estados Americanos (OEA) é um âmbito que responde aos interesses dos Estados Unidos.

No continente americano, o organismo excluiu os Estados Unidos e o Canadá, mas incluiu Cuba, país excluído da OEA.

Em 2010, Cuba era considerada a única ditadura na região. Onze anos depois, acrescentando a Venezuela e a Nicarágua, a América Latina e o Caribe têm três regimes questionados e sancionados internacionalmente.

"É um delírio uma comunidade que se constitui com esses países. Depois de cada reunião, o documento final nunca poderá mencionar a palavra 'democracia' nem dirá o que sofrem os povos cubano, venezuelano e nicaraguense", critica Jorge Faurie.

Equilíbrio difícil

Numa região polarizada entre visões políticas e econômicas completamente antagônicas, a Argentina pretende desempenhar um papel de articulação, visando o período pós-pandemia.

No campo político, quer se tornar uma espécie de elo no diálogo entre os Estados Unidos e os regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba.

"Essa é outra incongruência. Os Estados Unidos não precisam de pontes se quiserem estabelecer um diálogo com esses países. O que os Estados Unidos e a União Europeia realmente querem é que haja países nesta região que ajudem a recuperação da democracia na Venezuela, na Nicarágua e em Cuba", explica o embaixador Faurie, ao mesmo tempo que conclui: "Mas a Argentina, para conseguir os votos desses países, prefere ficar em silêncio e esconder a realidade".

Conivência em troca de votos

Na Celac, todas as decisões precisam de consenso. Basta um voto contrário para um impasse. Em setembro passado, estava tudo pronto para a Argentina assumir a presidência do organismo, mas, como o governo do presidente Alberto Fernández questionava a prisão de opositores políticos na Nicarágua, o regime de Daniel Ortega retirou o apoio à Argentina.

O compromisso agora assumido pela Argentina é o de não questionar o regime de Ortega. A Argentina vai abster-se nas votações que procurarem condenar as violações aos direitos humanos na Nicarágua, na Venezuela e em Cuba.

"Seja por razões financeiras ou políticas, está claro que a Argentina tem vedado as críticas a esses países", indica à RFI o cientista político Lucas Romero, da Synopsis Consultores.

Perda de prestígio

Para liderar a região, incluindo os regimes questionados, a Argentina tem comprometido a sua principal bandeira de prestígio internacional: a defesa dos direitos humanos.

Nas últimas quatro décadas, desde que recuperou a democracia em 1983, a Argentina foi uma referência internacional na matéria. Na região, foi o primeiro país a acabar com a ditadura e marcou um rumo para os vizinhos. Além disso, indicou o caminho ao julgar e condenar centenas de ex-repressores do antigo regime militar.

"A atual postura de não condenar os regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba afasta a Argentina da sua liderança em matéria de direitos humanos. É uma vergonha e, ao mesmo tempo, uma pena. Era uma liderança ganha pelo exemplo. A Argentina serviu como um pilar na região para instalar a questão de respeito aos direitos humanos. Isso fica agora totalmente fraturado", explica à RFI o cientista político Sergio Berensztein.

O presidente Alberto Fernández tem alegado o princípio de não-intervenção em terceiros países para não condenar os regimes cubano, nicaraguense e venezuelano, embora os direitos humanos não sejam aplicável a esse princípio.

No entanto, o argumento só vale quando o país a ser questionado for governado pela esquerda. Quando o governo é de direita, como nos casos de Brasil, Chile, Uruguai e Colômbia, Fernández opina sobre política interna sem duvidar, segundo analistas.

"Fica claro que o princípio de não-intervenção que regia nas relações diplomáticas ficou bem diluído nos últimos tempos. Alberto Fernández se meteu nas eleições de todos os países, menos em Venezuela, Cuba e Nicarágua. Não se mete onde não lhe convém", compara Lucas Romero.

Brasil auto-excluído

Em 15 de janeiro de 2020, alinhado aos interesses dos Estados Unidos, o governo de Jair Bolsonaro decidiu suspender a participação do Brasil na Celac. O objetivo foi esvaziar o peso do foro, mas, sobretudo, a voz de Cuba, Venezuela e Nicarágua.

O então chanceler Ernesto Araújo criticou a "falta de resultados na defesa da democracia" por parte da Celac e concluiu que o foro tornou-se "um palco para regimes não-democráticos como os de Venezuela, Cuba, Nicarágua".

A Argentina aproveita a ausência do Brasil para liderar a comunidade, mesmo que o Brasil represente metade da região em termos territorial e econômico. "O país de maior peso na região, atualmente, não está na Celac", sublinha Jorge Faurie.

Ao mesmo tempo, fora da Celac, o Brasil perdeu a chance de exercer a voz dos países que condenam as violações aos direitos humanos na América Latina.

Acordo com a China e com o FMI

A China quer um acordo amplo com a Celac nos campos comercial, econômico e financeiro. O entendimento inclui linhas de crédito e investimentos em telecomunicações, leia-se, tecnologia 5G.

Essa aproximação preocupa os Estados Unidos. Além de acobertar os regimes de Venezuela, Nicarágua e Cuba, a Argentina seria pivô de uma aproximação com a China.

"Essa aproximação com a China está presente nos cálculos dos EUA e nas negociações entre a Argentina e o FMI. Os Estados Unidos sempre registram esses movimentos", adverte Jorge Faurie

A Argentina precisa do apoio dos Estados Unidos nas negociações por um acordo financeiro com o Fundo Monetário Internacional. Os Estados Unidos são o principal acionista no FMI. Sem o aval político de Washington, não há acordo.

"Esses movimentos contraditórios da política externa argentina desorientam as partes envolvidas nas negociações. Não facilita o acordo", acredita o diplomata.

A Argentina precisa do aval norte-americano antes do dia 22 de março, quando vence uma parcela da dívida com o FMI. A Argentina não tem dinheiro para honrar esse pagamento.

"A Argentina não pode pretender um acordo com o FMI e continuar com essa política ambígua de apoiar a Nicarágua e a Venezuela", conclui Sergio Berensztein.

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