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Linha Direta

Variante Delta na América Latina expõe limites da 'diplomacia da vacina' da Rússia e da China

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A produção insuficiente da vacina russa Sputnik e a eficácia mais baixa dos imunizantes chineses permitem aos Estados Unidos recuperarem parte do terreno perdido pelo ex-presidente norte-americano Donald Trump.

Profissional de saúde administra vacina da AstraZeneca em um centro de Buenos Aires, na Argentina, em 27 de julho de 2021.
Profissional de saúde administra vacina da AstraZeneca em um centro de Buenos Aires, na Argentina, em 27 de julho de 2021. AP - Victor R. Caivano
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Tem faltado fôlego para a Rússia e para a China na corrida internacional que usa as vacinas como instrumentos de geopolítica. Paralelamente, o sucesso das vacinas de RNA --Pfizer e Moderna-- tem permitido aos Estados Unidos o retorno ao tabuleiro regional, do qual Trump havia se retirado e deixado o caminho livre para o soft power do Kremlin e de Pequim.

"Os Estados Unidos chegaram atrasados com a sua estratégia para a América Latina, permitindo um avanço da Rússia e da China. Porém, esses países esbarram agora em suas fraquezas", explica à RFI o sociólogo e analista político chileno Patricio Navia, professor da Universidade de Diego Portales, no Chile, e da New York University, nos Estados Unidos.

"A China tem muitas vacinas, muita capacidade de produção, mas o produto não é tão bom. Não sabemos se o fármaco da Rússia é bom porque falta material científico, mas sabemos que não está disponível. Os Estados Unidos começam a entregar vacinas à América Latina, aproveitando a qualidade dos seus produtos e a sua capacidade de produção", indica Navia.

O Uruguai já prepara a campanha de vacinação com dose extra de Pfizer para todos aqueles que foram imunizados com CoronaVac. Ou seja: vai substituir a vacina chinesa pela norte-americana. Já o Chile, na semana passada, começou a aplicar uma terceira dose do produto da suedo-britânica AstraZeneca e da norte-americana Pfizer nas pessoas vacinadas com a CoronaVac. O Brasil realiza ensaios clínicos para decidir se também fará o mesmo. Os três países adotaram o imunizante do laboratório chinês Sinovac.

A estratégia de uma terceira dose no Chile e no Uruguai está associada à redução da proteção da vacina chinesa. Estudos científicos chilenos concluíram que, nos casos sintomáticos, a eficácia da CoronaVac (67%) fica ainda menor (58,49%) depois de seis meses de aplicada a primeira dose. 

Primeira a chegar

O mérito das vacinas chinesas foi permitir as campanhas de vacinação na América Latina quando os países não tinham acesso a outro imunizante em grandes quantidades. Sem a parceria com a China, a região estaria agora desprotegida. O fármaco chinês Sinopharm, por exemplo, é o mais utilizado na Argentina e no Peru.

A questão é a eficácia dessas vacinas diante de uma fase mais desafiadora de novas variantes. 

"CoronaVac e Sinopharm, embora previnam contra quadros graves da doença, são menos eficazes. A evidência científica demonstrou que, dentro do ranking de vacinas, claramente Pfizer e Moderna estão acima de todas. Nesse ranking, as vacinas chinesas e russas têm pouca informação científica e pouca transparência. Em algum momento, será necessária uma terceira dose para todas as vacinas, mas isso começa agora pelas chinesas", aponta à RFI o neurologista argentino Conrado Estol.

Queda na produção russa

No caso da vacina russa Sputnik, o maior problema é a produção insuficiente. Há uma semana, a Argentina começou a aplicar uma dose do imunizante da Moderna ou da AstraZeneca em substituição à segunda dose da Sputnik, em falta no mundo, devido à dificuldade de produção do instituto russo Gamaleya. A combinação de vacinas decidida pela Argentina exclui a chinesa Sinopharm. 

O imunizante russo possui dois componentes diferentes, um para cada dose. O primeiro componente (adenovírus 26) sempre teve atrasos consideráveis, mas o maior problema é a segunda injeção (adenovirus 5), cuja produção é bem mais lenta.

Isso levou os nove latino-americanos que utilizam a Sputnik (Argentina, México, Guatemala, Nicaragua, Honduras, Bolívia, Venezuela, Paraguai e Guiana) a ampliarem de 21 dias a três meses o intervalo entre as injeções à espera da segunda dose.

Mesmo assim, a produção do segundo componente não cumpriu com o novo calendário, colocando em risco as campanhas de vacinação, sobretudo diante da variante Delta que requer o esquema completo.

"Evidentemente, a Rússia superestimou a sua capacidade de fabricar a segunda dose, deixando milhões de pessoas com mais de três meses sem completar a vacinação. A Rússia vendeu 150 milhões de doses, mas só entregou 15 milhões. E a Argentina foi o país que mais doses recebeu. Por isso, teve de tomar essa decisão emergencial antes do que os demais", compara Conrado Estol.

No caso argentino, 6,6 milhões de pessoas esperavam pela segunda injeção. Já a Guatemala se cansou de esperar e cancelou a metade do contrato de 16 milhões de doses. O Panamá percebeu que a Rússia não cumpriria e cancelou todo o contrato de três milhões de doses.

"As vacinas não deveriam ter, mas têm nacionalidade. É a diplomacia das vacinas ou geopolítica das vacinas. No terreno internacional, as vacinas são um instrumento de política exterior e a Argentina entrou nessa visão. Foi um erro e o governo argentino está pagando um custo político pela forma como enfrentou o problema. Na campanha de vacinação da Argentina, houve mais geopolítica do que ciência", descreve o analista político argentino, Rosendo Fraga.

Aposta geopolítica

A preocupação do governo argentino devido à falta do segundo componente russo ficou evidente em uma carta do dia 7 de julho, escrita por Cecilia Nicolini, assessora do presidente Alberto Fernández, ao Fundo Russo de Investimento Direto, designado por Vladimir Putin para negociar a Sputnik V.

"Estamos numa situação muito crítica. Entendemos a falta e as dificuldades de produção de alguns meses atrás, mas agora, sete meses depois, ainda estamos muito atrasados. A esta altura, todo o contrato corre risco de ser publicamente cancelado", advertiu a assessora argentina.

Nicolini também revelou como a preferência da Argentina pelas vacinas russas foi uma aposta geopolítica, em detrimento das vacinas dos Estados Unidos.

"Fizemos tudo o que foi possível para que a Sputnik V fosse o maior sucesso, mas vocês nos deixam com poucas opções para continuarmos a brigar por vocês e por este projeto. Recentemente, emitimos um decreto que nos permite assinar contratos com empresas norte-americanas e receber doações dos Estados Unidos", avisou.

No final de julho, a Argentina recebeu 3,5 milhões de doses da Moderna, doadas pelos Estados Unidos, rompendo uma resistência a assinar com um laboratório norte-americano.

"No mundo científico, a variável da geopolítica não deveria aparecer. Quando a ideologia interfere na decisão sanitária por uma vacina, quem perde são os cidadãos que ficam sem as melhores vacinas", lamenta o médico Roberto Debbag, vice-presidente da Sociedade Latino-americana de Infectologia Pediátrica.

Virada no tabuleiro regional

Os limites da "diplomacia de vacinas" da Rússia e da China para ganharem terreno na América Latina começam a ser aproveitados por Washington que, no uso do softpower, recupera parte do terreno na região abandonada por Donald Trump, com sua política "America First" (os Estados Unidos em primeiro lugar).

As doações de 18 milhões de doses a 15 países da região chegaram após alguma visita de enviados especiais de Joe Biden. Neste mês, por exemplo, o braço-direito do presidente norte-americano, o assessor de Segurança Nacional Jake Sullivan, esteve no Brasil e na Argentina com uma preocupação principal: a crescente presença da China na região.

Na Argentina, Sullivan pressionou pela opção norte-americana na telefonia 5G em disputa com a China. Também ofereceu tecnologia para combater a pesca ilegal, basicamente praticada por barcos chineses na costa argentina. Em troca, indicou a disposição de ajudar Buenos Aires para chegar a um acordo financeiro com o FMI e antecipou que os Estados Unidos preparam uma nova doação de vacinas à América Latina. 

"A China demonstrou a sua força ao entrar muito rápido na América Latina com as suas vacinas. A Rússia não conseguiu se estabelecer. Os países latino-americanos preferem os Estados Unidos, mas olham com um pouco de desconfiança depois da experiência com Trump. Já Biden tenta se envolver mais com a América Latina, mas a região ainda espera por mais sinais de confiança", conclui o cientista político Patricio Navia.

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