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Linha Direta

Mercosul completa 30 anos e tenta manter relevância no cenário internacional

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O bloco formado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, com Venezuela suspensa por "ruptura da ordem democrática", completa 30 anos com o desafio de renovar-se para não se tornar irrelevante no cenário internacional. Como nunca na sua história, o Mercosul vive a tensão ideológica no seu núcleo, com visões opostas entre Brasil e Argentina sobre economia e integração com o mundo. Essa disputa pode definir o futuro do bloco.

30 anos de fundação do Mercosul
30 anos de fundação do Mercosul © Fotomontagem RFI/Adriana de Freitas/@mercosur
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Durante os regimes militares dos anos 70 e 80, Argentina contra Brasil era uma das principais hipóteses de guerra no mundo. Recuperada a Democracia na Argentina (1983) e no Brasil (1985), a ameaça das ogivas cedeu à integração plena.

Foi com esse espírito que nasceu o processo de integração entre Brasil e Argentina, iniciado em 1985, com os ex-presidentes José Sarney (Brasil) e Raúl Alfonsín (Argentina), as duas principais economias da América do Sul e até hoje o núcleo da integração regional.

No caminho, como extensão natural da fronteira cultural e econômica, foram convidados o Uruguai e o Paraguai, que recuperavam também a Democracia em 1985 e 1989, respectivamente.

Esses primeiros passos culminaram no Tratado de Assunção, há exatamente 30 anos. O documento estabeleceu uma Zona de Livre Comércio entre os quatro fundadores e traçou o horizonte de uma União Alfandegária a partir de 1995.

"Tudo isso tinha como objetivo gerar, gradualmente, uma maior competitividade das nossas economias, altamente fechadas, e inserir-nos na economia internacional de maneira eficiente", recorda à RFI o ex-chanceler Jorge Faurie (2017-2019), que, como diplomata, acompanhou o processo desde os primeiros passos de Alfonsín e Sarney.

De lá para cá, o Mercosul multiplicou o comércio regional e tornou-se a quinta maior economia do mundo.

Do ápice ao declínio

No entanto, a partir de 2010, o bloco viveu um forte período de estagnação, marcado pelas crescentes restrições ao comércio por parte da Argentina e pela brusca queda na economia brasileira a partir da Operação Lava Jato (2014) em sintonia com a queda do valor das matérias primas, principal exportação do bloco.

"O bloco avançou, apesar das crises no Brasil e na Argentina, até o governo de Cristina Kirchner (2007-2015) que vê como ideal de nação uma economia fechada e estatal. Surge o protecionismo, as barreiras comerciais e uma economia completamente desarticulada e endividada", indica Faurie.

A mudança ideológica da esquerda à centro-direita, com a chegada de Mauricio Macri ao governo argentino e de Michel Temer ao brasileiro, imprimiram ao bloco a busca de um novo dinamismo, apoiado na ideia de que o mundo pós-crise financeira internacional de 2008 tinha mudado e que era necessário abrir-se ao mundo.

"O Mercosul tem três períodos a serem analisados. Uma primeira fase de intensidade para dentro, uma segunda fase de encolhimento e uma terceira fase atual de rediscussão do bloco", explica à RFI o consultor em negócios internacionais e comércio exterior, Marcelo Elizondo, um dos maiores especialistas sobre Mercosul.

Elizondo vê os primeiros 20 anos do bloco como um período próspero durante o qual a Argentina quintuplica o seu comércio exterior com o Brasil e destina 30% das suas exportações aos países do Mercosul.

Paralelamente, o bloco atraía investimentos e integrava as cadeias de valor dos setores entre os países.

A segunda etapa, observa Elizondo, vem depois de 2010. O Mercosul começa um profundo encolhimento e o comércio bilateral entre Brasil e Argentina reduz-se pela metade.

Nesse período, a Argentina começa a fechar-se ao mundo e coloca todo tipo de obstáculos ao comércio: restrições administrativas, licenças não-automáticas e controle de capitais. O projeto de um mercado comum baseado no livre comércio começa a definhar.

A terceira fase é o atual momento de discussão sobre o futuro do bloco.

"O Mercosul precisa de uma modernização. Tem um modelo obsoleto de integração. Está esgotado. Dos 20 blocos de integração no mundo, o Mercosul é o que menos comércio exterior tem em relação ao seu produto interno bruto. A relação exportações x PIB é de 14,9% enquanto a média no mundo é de 33%. Na União Europeia, por exemplo, é de 51%", compara o especialista Marcelo Elizondo.

Outro exemplo: o Mercosul não tem nenhum acordo de livre comércio vigente com nenhuma outra região do mundo, fazendo do bloco sul-americano o menos internacional de todos.

A mudança de rumo que agora se discute ganhou impulso em 2019 com dois acordos de livre comércio que ainda precisam ser ratificados: com a União Europeia e com a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA, nas siglas em inglês).

O acordo com os europeus, em junho de 2019, depois de 20 anos de negociações, permitiu ampliar o horizonte do bloco que lutava por sair do seu confinamento, mas a ratificação desse tratado é agora questionada por alguns países europeus como França, Áustria, Holanda, Irlanda e Bélgica.

Tensão ideológica

No campo interno, a sintonia ideológica que prevaleceu nos primeiros 29 anos tornou-se agora uma tensão ideológica que paralisa o bloco.

O Brasil de Jair Bolsonaro e a Argentina de Alberto Fernández estão em extremos opostos em relação à economia e qual deve ser o futuro do Mercosul.

"Hoje o Mercosul está dividido pela ideologia política que se traduz em política econômica. É uma visão oposta do mundo com uma tradução em termos econômicos e financeiros", observa o embaixador Jorge Faurie.

A Argentina tem uma postura protecionista e prefere um bloco fechado. Do outro lado, Brasil, Uruguai e Paraguai querem um bloco aberto que avance na sua essência de livre comércio em acordos com outros países e blocos.

A Argentina alega que quer esperar a pandemia passar para avaliar os danos na economia. No ano passado, o governo de Alberto Fernández chegou a anunciar que se retirava das negociações internacionais do Mercosul, mas depois recuou.

"O governo de Alberto Fernández começou dizendo que não gostava dos acordos externos e que se retirava das negociações com Canadá, Coreia do Sul, Cingapura, Japão e Índia. E que o acordo com a União Europeia prejudicava a Argentina", critica Jorge Faurie, um dos responsáveis pela assinatura do acordo com a União Europeia em 2019 e pela abertura das atuais negociações que o Mercosul mantém.

"Se o Mercosul tivesse muita exportação, muito comércio. Se fosse uma plataforma de negócios, de investimento, as diferenças ideológicas dos governos seriam minimizadas. Mas tudo ganha volume porque o bloco é cada vez menor e os países têm enormes dificuldades de acesso aos mercados externos", avalia Marcelo Elizondo.

"A enorme diferença ideológica entre Argentina e os demais países não é apenas esquerda contra direita, mas internacionalismo contra nacionalismo. A Argentina tem um nacionalismo autonomista sem preocupação com assuntos externos, enquanto Brasil, Uruguai e Paraguai querem a um internacionalismo econômico", indica.

"Há outro problema: enquanto o Brasil aponta ao futuro, a Argentina está presa no dia-a-dia. Enquanto Brasil, Uruguai e Paraguai podem pensar em estratégia, a Argentina administra desequilíbrios econômicos profundos como inflação acima de 50% anual, instabilidade cambial, falta de financiamento externo, constantes mudanças regulatórias", analisa Elizondo.

Mercosul-União Europeia e a questão ambiental

Mas nem tudo é culpa da Argentina na falta de sintonia com o mundo. Na questão ambiental, o Brasil é o réu.

O acordo fechado com a União Europeia está ameaçado porque alguns países europeus veem na política ambiental brasileira um ponto irreversível.

Analistas e negociadores do Mercosul não isentam de culpa a (ausência de uma) política ambiental do presidente Jair Bolsonaro, mas também observam que alguns países europeus que questionam os incêndios na Amazônia são os mesmos que sempre foram contra um acordo com o Mercosul por temerem as exportações agrícolas dos sul-americanos.

"O acordo União Europeia-Mercosul não está mal alinhavado em termos ambientais. O que alguns países europeus perceberam, em particular a França e a Áustria que têm interesses no setor agropecuário, é que encontraram na questão ambiental do Brasil um argumento para justificar um recuo, atendendo às suas questões domésticas. A questão do meio-ambiente está sendo usada para encobrir a agricultura ineficiente desses países", acredita Jorge Faurie, quem, no entanto, não exime o Brasil de culpa.

"Sem uma proposta ambiental, o cenário ficará complicado para o Brasil não só em relação à União Europeia. Não prestar atenção ao meio-ambiente no século XXI é um erro", sublinha.

"O problema ambiental existe não apenas no Brasil, mas no Paraguai e no Norte da Argentina também, mas a Amazônia é uma zona simbólica para o resto do mundo. A União Europeia não está inventando um assunto, mas provavelmente, por trás desse argumento, estejam outras questões como a agrícola e as eleições em países da Europa como a França", concorda Marcelo Elizondo.

"Mas acredito que falta um gesto do Brasil em matéria ambiental. Falta admitir a razão das reclamações europeias, comprometer-se com o Acordo Climático de Paris e adotar padrões que aproximem as partes. Esse gesto precisa vir do Brasil", aponta.

Flexibilização ou impasse nas negociações

Enquanto Brasil, Uruguai e Paraguai querem fechar acordos de livre comércio com Canadá, Singapura, Líbano e Coreia do Sul e avançar com Japão, México e até China e Estados Unidos, a Argentina quer incorporar a Bolívia como membro pleno.

Isolada no bloco, a Argentina precisa de um aliado ideológico como a Bolívia para enfrentar a postura dos outros três fundadores do bloco.

No Mercosul, os países precisam negociar em conjunto e aprovar decisões por unanimidade. Brasil, Uruguai e Paraguai querem flexibilizar essa regra, mas a Argentina argumenta que, se essa regra for modificada, é o fim do Mercosul como União Alfandegária.

"O Mercosul está nesse cabo-de-guerra: assinar acordos com terceiros países em conjunto ou flexibilizar as regras para permitir acordos individuais? Alterar a Tarifa Externa Comum em geral como o Brasil pede ou avaliar caso a caso como a Argentina propõe? O bloco está em plena discussão sobre o seu futuro", afirma Elizondo.

Brasil, Uruguai e Paraguai também querem atualizar a Tarifa Externa Comum do Mercosul. Essa tarifa é o que define a União Alfandegária. É uma barreira contra os produtos importados de outros países.

A Tarifa é hoje, em média, de 13%. Os três países querem reduzi-la pela metade, em sintonia com as tarifas hoje praticadas no mundo: em média 5,5%. A Argentina quer ver caso a caso.

"A União alfandegária é uma camisa-de-força porque é uma barreira tarifária não-competitiva. Se fosse uma União Alfandegária com tarifas mais competitivas, de acordo com o que se pratica no mundo, a história poderia ser outra", defende Jorge Faurie.

Risco de vida do bloco

Se o Mercosul não conseguir ratificar o acordo com a União Europeia nem fechar novos acordos de livre comércio pode continuar confinado, pode recuar a uma mera zona de livre comércio ou pode até mesmo se desmembrar.

"Se tiver capacidade de se adequar à realidade internacional de 2021, o potencial do Mercosul. Se os integrantes não encontrarem uma saída e o Mercosul perder peso, perderão todos os países porque uma coisa é projetar uma voz regional; outra é projetar uma voz individual num mundo que se une por blocos ou por potências", adverte Jorge Faurie.

"O Mercosul tem dois destinos possíveis: ou se moderniza com tratados de livre comércio com outros mercados e entende a economia mundial atual ou terminará cada vez menor até os países abandonarem o bloco. Como está, não pode continuar. Não tem futuro", sentencia Marcelo Elizondo.

30 anos depois do seu nascimento, o Mercosul está num ponto de inflexão. E um dos maiores desafios será durar outros 30 anos.

 

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