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Linha Direta

Mulheres não têm acesso a produtos básicos de higiene na Venezuela

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Hoje é o Dia Internacional da Mulher, mas, no “país das misses”, há pouco motivos para comemorar.  A hiperinflação dificulta o acesso a artigos de higiene pessoal e aos anticoncepcionais.

A Venezuela está atrasada em políticas que beneficiem o corpo da mulher. Em fevereiro deste ano o presidente Nicolás Maduro afirmou que “não é prioritário, nem está na agenda debater sobre o casamento igualitário e sobre o aborto”.
A Venezuela está atrasada em políticas que beneficiem o corpo da mulher. Em fevereiro deste ano o presidente Nicolás Maduro afirmou que “não é prioritário, nem está na agenda debater sobre o casamento igualitário e sobre o aborto”. AP - Ariana Cubillos
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Por Elianah Jorge, correspondente da RFI Brasil

As venezuelanas são vaidosas e cuidam muito da aparência. Com sete títulos conquistados no Miss Universo, elas têm uma reputação a zelar. Mas não tem sido fácil. 

Com a hiperinflação de mais de 3.000% só no ano passado, de acordo com o Banco Central, os artigos de higiene pessoal se tornaram inviáveis para a maioria. Um kit básico de higiene com xampu, sabonete e desodorante, custa cerca de 4.800.000 bolívares (US$ 2,50). Já o pacote com oito unidades de absorventes  varia entre 1.300.000 e 2.800.000 bolívares (US$ 0,80 e US$ 1,50). 

Os preços estão cada vez mais altos, mas o salário mínimo estacionou em 800 mil bolívares (US$ 0,40). Outro problema é a falta de água no país.

“Em geral, a mulher venezuelana sempre foi muito asseada. Mas, a partir de 2017, quando a crise econômica afetou de forma impactante a população, começamos a notar que o cuidado com a higiene pessoal diminuiu em relação ao uso de desodorante e higiene íntima”, explicou à RFI Brasil o ginecologista Rafael Terán.   

Marie Mijares, de 21 anos, ganhou um coletor menstrual da irmã que mora na Argentina. O presente a ajudou a economizar. Antes, “ou comprava comida ou comprava absorventes", conta. "Com o coletor, eu economizo. Com o dinheiro que usava em três pacotes de absorventes, gasto com outros artigos de higiene pessoal”, diz.

Crise econômica x saúde sexual

Há poucas semanas, uma polêmica ganhou destaque nas redes sociais do país, depois da queixa feita por uma venezuelana sobre o alto custo cobrado em uma consulta ginecológica, US$ 60. Surgiu então o debate sobre como a crise econômica está tornando precário o acesso da mulher à saúde sexual e reprodutiva.

Se nos consultórios particulares os preços são altíssimos, nos hospitais públicos venezuelanos a falta de equipamentos desestimula a ida ao ginecologista. Por esse motivo, mulheres de várias classes sociais têm recorrido a consultas em ONGs dedicadas à saúde sexual, onde os valores são acessíveis. 

“Antes atendíamos basicamente pessoas das camadas mais populares. Mas agora atendemos pessoas de classe média que têm tido dificuldade de comprar  anticoncepcionais. Com isso, desde muito cedo, as pacientes chegam para tentar adquirir anticoncepcionais. Sobretudo porque os preços dos contraceptivos aqui custam cerca de 10% ou 20% do que custariam em outros lugares”, explicou Rafael Terán, que atende em uma ONG dedicada à saúde reprodutiva feminina.      

Os custos das pílulas e até mesmo dos preservativos têm incentivado homens de várias idades, inclusive que não tiveram filhos, a recorrer à vasectomia

Aborto, só ilegal

A Venezuela está atrasada em políticas de proteção à mulher. Em fevereiro deste ano o presidente Nicolás Maduro afirmou que “não é prioritário, nem está na agenda debater o casamento igualitário e o aborto”. 

Há décadas a Venezuela é líder na taxa de gravidez entre adolescentes. Nos últimos anos, com a falta de acesso aos anticoncepcionais, disparou o número de gestações não planejadas, inclusive entre mulheres de quase 40 anos.

Para a jornalista Kerli Rivera ofuscar o debate sobre o direito ao aborto aponta que “Maduro demonstra não estar atento ao progresso do país. Falar sobre esse tema faria com que as pessoas pensassem e evoluíssem”. 

Há anos ela decidiu interromper uma gestação. Contou com o apoio da família e o procedimento foi feito em uma clínica privada e em segurança. Já uma amiga dela não teve a mesma sorte. Sem recursos, a jovem recorreu ao mercado clandestino e realizou o aborto em casa. 

Pelas redes sociais venezuelanas é possível ter acesso a remédios abortivos. Um deles é o Cytotec. À base de misoprostol, o medicamento é proibido no Brasil. Já na Venezuela é possível comprar cada comprimido por US$ 8.      

“O governo venezuelano não trata bem as mulheres. Na verdade, o Estado usa as mulheres mães e pobres como instrumento de programas sociais. Tem sido uma política baseada no uso institucional das mulheres para avançar em uma agenda totalitária e de controle social”, descreve Luisa Kislinger, ativista do Direito das Mulheres no país. 

Segundo Kislinger, “as consequências são evidentes nos temas de saúde sexual e reprodutiva. As mulheres na Venezuela não têm acesso a métodos de controle e planejamento de natalidade. Antes havia a possibilidade de que as mulheres tomassem decisões fundamentais relacionadas às suas vidas. Hoje em dia isso não é possível para uma vasta maioria delas”.

Bônus por parto

Em 2017, em plena escassez de remédios e de insumos médicos, o presidente Nicolás Maduro lançou o Programa Parto Humanizado, para incentivar o parto normal. No ano ano passado, ele disse em rede nacional de rádio e TV que “a mulher foi feita para parir". "Que todas as mulheres tenham seis filhos, que a pátria cresça”, afirmou o líder. 

Segundo o Ministério da Mulher, esporadicamente são realizadas “jornadas de anticoncepcionais” ou “jornadas de empoderamento de direitos sexuais e reprodutivos”. Responsáveis pela pasta afirmam que “o governo tem como objetivo fundamental proteger as mulheres grávidas e as lactantes para que tenham proteção e orientação”. 

Para as mães inscritas nos programas sociais, o Estado venezuelano concede um bônus de cerca de 1.200.000 bolívares (US$ 0,63). Já um pacote com 30 fraldas custa cerca de 14.000.000 bolívares (US$ 7,38). 

Outro fator agravante para a situação das mulheres está relacionado ao êxodo de quase seis milhões de venezuelanos. Uma parcela importante deste grupo é composta por homens que foram buscar melhores condições de vida fora do país. 

A Pesquisa de Condições de Vida do Venezuelano (Encovi, sigla em espanhol) destacou que dos 28 milhões de habitantes do país, quase 15 milhões são mulheres. A mesma amostra aponta que 59,9% das famílias são chefiadas pelas venezuelanas.

Aumento do feminicídio

Com a pandemia e o agravamento da crise econômica mundial, muitos homens que deixaram a Venezuela não conseguem mandar dinheiro às suas famílias. Por isso, cerca de 95% dos lares chefiados por mulheres estão em situação de pobreza, apontou a pesquisa. 

Nas últimas semanas, a morte de seis venezuelanas teve forte destaque no país. O agressor de duas das vítimas está preso. Os crimes motivaram protestos em diversas regiões. De acordo com a ONG Vozes de Gênero Venezuela, pelo menos 210 mulheres foram vítimas de feminicídio desde março do ano passado. No entanto, a impunidade desmotiva a denúncia por parte das vítimas de assédios e violências.  

Enquanto transitava à tarde pelo Boulevard de Sábana Grande, um dos principais corredores humanos de Caracas, a estudante e feminista Penélope Longart foi atacada por três homens. Ela chegou a ser agredida e teve parte de suas roupas rasgada, mas conseguiu ser salva por um motociclista, que circulava perto do local no momento da agressão. 

A jovem preferiu denunciar nas redes sociais o que viveu em vez de ir a uma delegacia. Segundo ela, "a justiça venezuelana não existe”. “A indignação se aglutina em torno dessas mortes, mas também tem a ver com processos contínuos de inação de parte do Estado venezuelano", diz a militante feminista Luisa Kislinger. 

Ela lembra o caso emblemático de Linda Loaiza, venezuelana que foi estuprada, torturada e mutilada por quase 100 dias em Caracas em 2001. "Apesar de ter uma condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado venezuelano não fez nada”, ressalta a ativista.

A impunidade ao agressor motivou Linda Loaiza a denunciar a Venezuela à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ela se tornou a primeira mulher do país a apelar a esta instância, que considerou o Estado responsável pela negligência. 

Para esta segunda-feira está prevista uma série de atos públicos nas principais cidades da Venezuela. No entanto, o governo de Maduro, temendo o avanço da variante brasileira da Covid-19, anunciou uma semana de quarentena radical em todo o país que podem comprometer as manifestações do Dia Internacional da Mulher.

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