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Melbourne 1956: a política não poupa atletas

O ano de 1956 foi um dos mais turbulentos do pós-guerra: XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, levante de Budapeste, revolta de Poznań na Polônia, caso do canal de Suez, onda de descolonização, guerra na Argélia… Os Jogos Olímpicos de Melbourne foram um reflexo fiel deste mundo, em que surgiam novas relações de poder. 

Vista aérea da Vila Olímpica em Melbourne, Austrália, em 1956.
Vista aérea da Vila Olímpica em Melbourne, Austrália, em 1956. © AP Photo
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Farid Fatemi – redação iraniana da RFI

A primeira Olimpíada do hemisfério sul, excepcionalmente adiada para o mês de novembro, os Jogos de Melbourne, na Austrália, representaram também o momento histórico em que o "Terceiro Mundo" despontou no cenário internacional. Com a descolonização atingindo o seu auge, em 1960, o número de Comitês Olímpicos Nacionais aumentou rapidamente - como aconteceu após o desmembramento da URSS.

Assim, em plena Guerra Fria, Melbourne se tornou a imagem da "nova ordem mundial", cenário ideal para o confronto das duas superpotências, ao lado dos países do Terceiro Mundo que, atuando com "neutralidade", queriam demonstrar a sua independência frente aos dois blocos.

Para a União Soviética, que participava pela segunda vez dos Jogos Olímpicos, Melbourne era a oportunidade perfeita para mostrar a onipotência do bloco socialista.

A bandeira soviética é carregada durante a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Verão em Melbourne, Austrália, em 8 de dezembro de 1956.
A bandeira soviética é carregada durante a cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos de Verão em Melbourne, Austrália, em 8 de dezembro de 1956. © AP

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Embora Melbourne seja frequentemente citada como a primeira Olimpíada marcada pelo selo do boicote, a não participação nos Jogos com o objetivo de enviar uma mensagem política é mais antiga: já em 1896, a Turquia (Império Otomano) boicotou os Jogos de Atenas devido às hostilidades contra a Grécia.

No entanto, em 1956, os boicotes políticos assumiram uma dimensão sem precedentes. Um fato revelador da época é que foram os países em desenvolvimento que tomaram a iniciativa dos primeiros boicotes.

Outra grande particularidade deste período: foi a partir deste ano que teve início a transmissão televisiva das Olimpíadas. Os Jogos de Inverno em Cortina d'Ampezzo (Itália, janeiro de 1956) são frequentemente considerados o início da era da televisão olímpica.

Mas em outubro de 1956, mais do que em Melbourne, dois locais do globo atraíram particularmente a atenção da comunidade internacional: o Egito, com as consequências da nacionalização do Canal do Suez, e a Hungria, com a revolta dos estudantes contra o controle da União Soviética.

O Caso de Suez

A França, principal acionista depois da Inglaterra do Canal de Suez, não apoiando a audácia do presidente egípcio de nacionalizar o Canal em julho deste ano, empreendeu, ao lado de ingleses e israelenses, uma aventura bastante arriscada. Convencida de que o presidente Gamal Abdel Nasser estava colocando lenha na fogueira argelina, Paris queria se livrar do chefe de Estado.

Após capturar um barco cheio de armas – o Athos – bem perto da costa argelina, a França tinha certeza de que a carga vinha de Alexandria e tinha como destino a Frente de Libertação Nacional (FLN), partido nacionalista argelino. 

O governo francês acreditava que possuía uma "prova irrefutável da intervenção egípcia na Argélia" e que convenceria o mundo inteiro da responsabilidade do Egito, tanto no caso do Canal quanto na guerra da Argélia. Em 26 de setembro, em Paris, o então primeiro-ministro britânico, Anthony Eden, e o presidente do Conselho de Ministros da França, Guy Mollet, discutem o caso de Suez.

A historiadora Georgette Elgey resume assim o pensamento majoritário da opinião pública francesa à época: “Sonhamos em lutar contra Nasser para pôr fim à guerra na Argélia” e, ao mesmo tempo, salvar “o trabalho de Lesseps” (em referência a Ferdinand de Lesseps, diplomata e empresário francês conhecido por promover a construção dos canais de Suez e do Panamá).

Em agosto, Christian Pineau, ministro francês das Relações Exteriores, emitiu um alerta velado: "ou o coronel Nasser cederá e reconsiderará completamente as medidas que tomou, reconhecendo assim seu erro, ou ele não irá se curvar. Neste caso, todas as medidas devem ser tomadas para obrigá-lo a se submeter”.

Essas “medidas” foram tomadas durante os acordos secretos de Sevres entre França, Grã-Bretanha e Israel. De acordo com esse protocolo, e contrariando as recomendações americanas, o Exército israelense invadiria o Canal, as forças francesas e britânicas então interviriam, oficialmente, para acalmar as coisas. Na verdade, para tomar posse de Suez e, idealmente, acabar com o governo egípcio.

Thierry Terret, historien du sport et de l’Olympisme
Thierry Terret, historien du sport et de l’Olympisme © Captura de tela

A Revolta Húngara

Assim que o XX Congresso do Partido Comunista da URSS formalizou a onda de desestalinização, em fevereiro de 1956, um vento de liberdade começou a soprar sobre o bloco oriental. Em junho, os poloneses organizam a sua primeira revolta contra o regime comunista com o violento levante em Poznań.

Por sua vez, em outubro, os húngaros exigiam a volta ao poder de Imre Nagy, comunista moderado e reformista, expulso do poder no ano anterior. Mas ao retornar, Nagy, apoiado pelos estudantes e pelos trabalhadores, foi longe demais em relação a Moscou e anunciou a retirada da Hungria do Pacto de Varsóvia: uma falha imperdoável para Khrushchev e o Partido Comunista Soviético, que decide sobre uma punição imediata.

Em 12 de novembro, os habitantes de Budapeste se manifestam contra a intervenção das tropas soviéticas.

A conflagração das duas crises do Oriente Médio e da Europa Central atingiram o seu clímax quase ao mesmo tempo: em 29 de outubro, de acordo com o plano denominado “Mosqueteiro”, Israel invadiu o Sinai e alcançou o Canal de Suez. Dois dias depois, as forças franco-britânicas bombardearam a força aérea egípcia em solo para permitir o avanço dos israelenses.

No dia seguinte, a insurreição da população de Budapeste levava à ocupação da sede do Partido Comunista: os húngaros começavam a acreditar no triunfo de sua revolução.

Porém, em 4 de novembro, às 3 horas da manhã, os tanques soviéticos entraram em Budapeste. A repressão seria brutal.

No espaço de quatro dias, o Conselho de Segurança da ONU, pego de surpresa, adotou duas resoluções consecutivas: a resolução 119 convocou uma sessão especial de emergência da Assembleia-geral para reagir à “grave situação criada pela ação tomada contra o Egito".

E a n.º 120: decisão semelhante para examinar “a grave situação criada pelo uso das Forças Armadas soviéticas para suprimir os esforços do povo húngaro para reafirmar os seus direitos”.

Se a comunidade internacional nada pôde fazer contra a repressão na Hungria, a aventura imprudente dos "três mosqueteiros" de Suez seria fortemente repreendida pelas duas superpotências que não queriam ter uma situação explosiva no Oriente Médio.

A URSS ameaça abertamente a França, a Grã-Bretanha e Israel com uma resposta nuclear. A Otan, por sua vez, reage brandindo a ameaça nuclear contra a URSS se esta usasse armas atômicas.

Em 4 de novembro, as tropas anglo-francesas desembarcavam em Port Fouad, perto de Port Said, no Egito.
Em 4 de novembro, as tropas anglo-francesas desembarcavam em Port Fouad, perto de Port Said, no Egito. © Guy Touchard / AFP

Foi quando os Estados Unidos intervieram: os americanos exigiram a retirada das forças israelenses, francesas e britânicas para acabar com a crise.

Finalmente, em 6 de novembro, sob pressão de Moscou e de Washington, a intervenção armada no Egito termina sem o menor resultado, exceto se tornar um escândalo mundial e gerar zombaria e sarcasmo contra Paris e Londres.

A dissociação dos Estados Unidos em relação à Grã-Bretanha na crise de Suez é considerada, hoje, como a maior desavença do século XX entre os dois grandes aliados.

Jogos e boicotes

No dia 22 de novembro, enquanto o mundo inteiro ainda se perguntava sobre as consequências das duas grandes crises geopolíticas, Ron Clarke, um jovem atleta australiano, acende a pira dos jogos de verão no estádio Cricket Ground, em Melbourne.

Bastaram apenas três semanas entre a crise política e o início dos Jogos para que vários Estados tomassem decisões radicais. Egito, Iraque e Líbano decidiram boicotar os Jogos em protesto contra “a ocupação franco-britânica no Canal de Suez". Ao mesmo tempo, eles protestavam contra a presença de Israel em Melbourne.

Por sua vez, Espanha, Holanda e Suíça usaram dessa mesma arma para expressar seu desacordo com a intervenção soviética na Hungria.

Confrontos políticos de atletas

Quase um mês após o fracasso da revolta de Budapeste, as equipes de polo aquático da Hungria e da URSS se enfrentaram nas semifinais. Durante a partida, o jogador soviético Valentin Prokopov deu uma cabeçada no húngaro Ervin Zádor, que já havia marcado dois gols. As duas equipes entraram em confronto e vários jogadores se machucaram. Testemunhas disseram que a água da piscina ficou vermelha.

A polícia australiana teve de intervir para proteger o time soviético da ira dos espectadores. No final, a Hungria conquistou a medalha de ouro no polo aquático e os soviéticos a medalha de bronze.

Ervin Zador, jogador húngaro de polo aquático lesionado na partida contra os soviéticos.
Ervin Zador, jogador húngaro de polo aquático lesionado na partida contra os soviéticos. AP

O fim dos jogos

Na Vila Olímpica de Melbourne, alguns membros da delegação húngara atacaram a bandeira oficial da Hungria e recortaram os símbolos comunistas. Em seguida, eles substituíram essa bandeira pela que ostenta o "brasão de armas de Kossuth", símbolo da revolução húngara de 1848.

Na hora de fazer as malas, vários atletas húngaros pediram asilo político na Austrália e se recusaram a regressar ao seu país.

Longe da Austrália, outro esportista húngaro, a lenda do futebol Ferenc Puskás, também buscaria asilo político na Áustria.

Na classificação final, a União Soviética, que participava pela segunda vez dos Jogos de Verão, ultrapassa os EUA e ocupa o primeiro lugar. A Hungria fica com o 4º lugar. Nenhum país árabe esteve presente em Melbourne.

Gamal Abdel Nasser consegue a nacionalização de Suez e ganha grande notoriedade no mundo árabe, que entraria em colapso após a guerra dos seis dias e a brilhante vingança de Israel.

A França e a Grã-Bretanha saem com sua imagem prejudicada do levante no Egito, enquanto a Hungria permaneceria na sombra soviética por ainda mais trinta anos.

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