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ONU denuncia assassinatos, tortura e estupros na guerra da Etiópia, que já dura um ano

Um cotidiano marcado por execuções, sequestros, prisões arbitrárias, torturas e estupros. É isso que tem vivido a população da região de Tigré, no norte da Etiópia, há um ano. A alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachellet, denunciou nesta quarta-feira (3) os crimes de guerra e contra a humanidade perpetrados neste conflito de “brutalidade extrema” entre rebeldes e o governo.

A capital da província de Tigré, Mekele, sofreu ataque aéreo feito pelo governo federal em 20 de outubro.
A capital da província de Tigré, Mekele, sofreu ataque aéreo feito pelo governo federal em 20 de outubro. AP
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Em 4 de novembro de 2020, o primeiro-ministro Abiy Ahmed deu início a um ataque militar contra as autoridades dissidentes da província de Tigré, região em que moram 4 milhões de etíopes. Com apoio da Eritreia, país fronteiriço, o exército etíope pressionava os rebeldes a abandonarem a área.

No entanto, os rebeldes conseguiram retomar forças e mudar o cenário. Desde junho, eles voltaram a controlar a região e o conflito passou a atingir também as províncias de Afar e Amhara.

A população é a maior atingida neste conflito que não parece ter fim, sofrendo abusos de todos os lados. Cerca de 400 mil pessoas sofrem com a fome, segundo estimativas.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou estar extremamente preocupado com a escalada da violência na região e pediu a interrupção imediata dos ataques.

A guerra, no entanto, parece estar longe do fim. O governo etíope decretou estado de emergência no país após os rebeldes declararem terem assumido o poder de Dessie e Kombolcha, duas cidades próximas da capital, Adis Abeba.

As autoridades etíopes pediram aos habitantes que registrem suas armas e se preparem para ajudar a defender a capital. Em um discurso na sede do Exército, o primeiro-ministro prometeu "afogar em sangue" os rebeldes que ameaçam avançar em direção à capital. "Afogaremos o inimigo em seu sangue e devolveremos a Etiópia à sua glória", disse.

Quem são os rebeldes?

Os rebeldes fazem parte da Frente Popular de Libertação do Tigré (FPLT). O movimento nasceu em 1975, após a derrubada do império de Hailé Sélassié. O grupo, que defende um poder etno-nacional, participou da luta armada em oposição ao regime autoritário e repressivo que governou o país por duas décadas.

Ao final da década de 1990, a FPLT torna-se base da coalizão da Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope, que toma o poder em 1991. Em 1995, o líder do partido, Meles Zenawi, assumiu o posto de primeiro-ministro da república parlamentar. O partido ficou no poder até a morte de Zenawi, em 2012.

No entanto, a ascensão ao poder de Abiy Ahmed como primeiro-ministro da Etiópia, em 2018, foi um golpe duro para o movimento. De origem oromo, a maior comunidade étnica do país, Ahmed prometeu enfraquecer a FPLT. Gradualmente, os partidários da etnia Tigré foram sendo escanteados e substituídos dos governos, mantendo o poder apenas na região norte do país.

Além disso, Ahmed refez os laços com a Eritreia, assinado um acordo com o presidente do país vizinho Isaias Afwerki. A Etiópia viveu por vinte anos um conflito com a Eritreia, que vitimou mais de 80 mil pessoas. A disputa pelo traçado de fronteiras ficou conhecido como “Guerra louca”, pois Afwerki era primo do então premiê Zenawi, o que dava contornos de briga de família ao conflito.

A reconciliação rendeu o Nobel da Paz a Ahmed, em 2019, mas aprofundou a ruptura contra os rebeldes no nordeste do país.

Guerra começa em novembro de 2020

Em novembro de 2020, durante a pandemia de Covid-19, Ahmed decide invadir militarmente a região de Tigré e derrubar o poder da FPLT.

Apesar de contar com um exército considerado poderoso, com cerca de 140 mil homens, o governo federal não conseguiu derrubar os rebeldes, que nos últimos meses vêm avançando sobre outras províncias e agora ameaçam a capital.

Para o pesquisador da Sciences Po, Roland Marchal, especialista de política na região, o governo etíope subestimou o apoio do grupo rebelde entre os habitantes e a possibilidade de que o conflito se tornasse uma guerra civil. "É o que vemos hoje, e provocou um grande número de vítimas civis e dificulta o avanço do exército etíope".

Em outubro, o exército federal atacou cidades da região de Tigré com bombardeios, provocando grande número de mortes entre os civis. No entanto, não se sabe ao certo o número de vítimas nesta região, que atualmente está com as redes de comunicação interrompidas.

Ao longo do último ano, o exército e os rebeldes têm cometido diversos crimes contra a população: execuções, estupros, saques, sequestros e torturas. É isso que mostra a investigação da ONU, que lista crimes cometidos entre novembro de 2020 e 28 de junho.

O conflito provocou uma onda de refugiados e de fome no país. No entanto, as Nações Unidas têm enfrentado muitas dificuldades para enviar ajuda humanitária à região e acusa o governo etíope de bloquear a ajuda internacional.

O que acontece agora?

Após a publicação do relatório da ONU, o primeiro-ministro etíope Abiy Ahmed afirmou que o trabalho descarta a possibilidade de ter sido cometido um genocídio em Tigré, acusação que tem sido feita contra seu governo.

A conclusão é considerada apressada pelo Alto Comissariado da ONU. Michelle Bachelet insistiu em uma entrevista coletiva que as investigações realizadas não permitem, por agora, estabelecer ou descartar a hipótese de genocídio. Os investigadores encontraram "provas perturbadoras de violência por motivos étnicos", disse a chilena.

A ONU pede que seja criada uma comissão internacional de inquérito para aprofundar as investigações e processar os responsáveis pelos crimes documentados.

Enquanto isso, no país, o primeiro-ministro etíope Abyi Ahmed prometeu em um discurso na sede do exército não dar trégua aos rebeldes de Tigré que ameaçam avançar em direção à capital.

(Com informações de Clémentine Pawlotsky, da RFI, e de Florence Morice, correspondante da RFI)

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