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“Diários da quarentena": museus e bibliotecas colecionam testemunhos digitais da pandemia

Do Oriente ao Ocidente, seguindo a onda do novo coronavírus que varre o mundo desde o início do ano, diários pessoais inundaram as mídias sociais. Dezenas de milhões de relatos minuciosos de anônimos e celebridades narram a relação com a doença até bem pouco tempo desconhecida que isolou em quarentena e mudou o dia a dia de metade da população do planeta.

Até a pop star Madonna tem registrado diariamente pelas redes sociais suas experiências durante a quarentena.
Até a pop star Madonna tem registrado diariamente pelas redes sociais suas experiências durante a quarentena. © captura de tela
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Vivian Oswald, correspondente da RFI em Londres

Material epistolar precioso, na avaliação de especialistas, eles começam a ser colecionados furiosamente por museus e bibliotecas do mundo inteiro. Na era da hiperconectividade, são as novas cartas. "A correspondência do século XXI”,  destaca o historiador Matthew Shaw, membro da Sociedade Histórica Real e bibliotecário-chefe do Instituto de Pesquisa Histórica da Escola de Altos Estudos da Universidade de Londres, em entrevista à RFI. 

Por toda parte, o que se discute é como lidar com tanta informação. A Universidade de Cambridge e o UK Web Archiving Consortium, grupo de seis instituições britânicas importantes que trabalham em colaboração em uma operação piloto para arquivar sites selecionados do Reino Unido, estão atrás desses documentos. Estudiosos vão inclusive a hospitais para gravar a experiência das pessoas, de médicos a pacientes, enquanto entre os etnologistas ainda se discute a ética da iniciativa.

Madonna adepta aos diários da quarentena

De diários escritos por jovens chineses publicados na internet — censurados mais tarde pelo governo — o mundo conseguiu enxergar o que acontecia na China para além dos relatos oficiais das autoridades.

Depoimentos gravados em vídeos e postados nas redes viraram até reportagens de televisão, muitas de denúncia, no Ocidente. Anônimos pela Ásia e pela Europa têm se dedicado a relatar a experiência da quarentena, ou como se reinventaram para a vida em confinamento.

Até pop star Madonna tem divulgado um pequeno diário de bobagens cotidianas em uma série de vídeos no Instagram. Recentemente, a cantora anunciou ter feito o teste da Covid-19 para informar aos fãs que tem anticorpos contra a doença.

“Diários da quarentena” é o nome de uma sitcom de comédia espanhola que está fazendo sucesso. Os atores se filmam em casa. Para o produtor da série, Alvaro Longoria, foi uma maneira de chegar até as pessoas e permitir que relaxem. “Eu podia ver, especialmente os meus pais, gente mais velha, que estavam todos ficando meio obsessivos. Achamos que seria bom para eles poderem se desconectar com um show humorístico”, disse.

O diário de Kay Speed, de 52 anos, gerente do supermercado Tesco em Sheerness, na ilha de Sheppey, no Reino Unido, ganhou seguidores na rede. Durante 33 dias consecutivos , ela contou a experiência de lidar com o pior e o melhor das pessoas desde o início desta crise. Movidos pelo chamado consumo do pânico, consumidores bateram boca e levaram às lágrimas parte dos 250 funcionários coordenados por ela. Eles estavam e ainda estão na linha de frente dos serviços essenciais mantidos abertos durante a quarentena.

Kay afirma que escrever a ajudou a organizar o pensamento e aliviar a tensão do dia a dia. “Era uma análise do que aconteceu e como poderia ter sido diferente. A experiência me deu espaço para refletir sobre as pessoas e por que eu faço o que faço”, disse à RFI, destacando suas histórias, que também foram parar nos jornais locais, ajudaram a equipe a enfrentar o desafio inédito da Covid-19.

As redes têm de tudo. Pais que se queixam ou se vangloriam da experiência de ter de ensinar aos filhos o currículo escolar. Pessoas que se lançam na cozinha para testar novas receitas, ou aquele adulto de meia idade que resolve voltar a estudar piano em plena quarentena. Gente que conta seu dia a dia, sem qualquer cerimônia, para quem quiser ler, ou não, pela internet. São centenas de milhares de contas que replicam hashtags com referências a diários em muitos idiomas distintos.

“Hoje, as interpretações e emoções do momento estão em boa medida presentes em diários pessoais nas mídias sociais, no que se discute pelo Twitter. As pessoas no passado teriam lido em cartas e nas reportagens. Era uma forma semelhante de enxergar as experiências, mas é claro que havia menos fontes do que agora”,  afirma Shaw.

Arquivos das experiências

É exatamente daí que arquivos e arquivistas devem tirar o conteúdo para o que chamam de apanhado documental que já estão fazendo.  Neste momento, as instituições colecionam o máximo que podem. Professores pedem a alunos documentos simbolizam esse momento. Alunos em escolas estão enviando imagens e vídeos do seu último ano letivo sob a crise. A Universidade de Cambridge também está pedindo para que pessoas enviem material, assim como a Escola de Estudos Avançados da Universidade de Londres, onde Shaw trabalha.

Fotos de cartas da Primeira Guerra Mundial de soldados.
Fotos de cartas da Primeira Guerra Mundial de soldados. © Vivian Oswald

“O mais importante é como preservar isso tudo na web. A UK web e outras organizações internacionais estão pesquisando no seu espaço virtual nacional, que é o alcance que podem ter pelos direitos de copyright. Muitos já estão fazendo a curadoria de coleções e pedindo contribuições para as suas páginas na internet”, diz.

Mas não é fácil colecionar, nem armazenar tudo isso. Boa parte do que é colocado nas redes de maneira muito imediata, como tweets, tik tok, moments do Instagram, entre outros, deve se perder. A preocupaçõa é que essas reações digitais não sejam  preservadas da mesma maneira como foram os escritos em papel no passado. 

Paralelos entre cartas e as redes sociais

Há muitos paralelos e diferenças entre as mídias sociais e as cartas, segundo Shaw. Ele foi curador da exposição “Resistindo a guerra: perda, coragem e humor”, na British Library, na capital britânica, em 2016, que contava, a partir de correspondências, cartões postais, cartazes, panfletos e poesia como o cidadão comum enfrentava os desdobramentos e os infortúnios da Primeira Guerra Mundial fora e dentro de casa. Isso porque a troca de missivas entre soldados, familiares, amigos e casais de namorados davam a dimensão da atmosfera tão pesada, e às vezes tão leve, da época.

Logo depois da guerra, veio a Gripe Espanhola, que matou de 50 a 100 milhões de pessoas pelo mundo entre 1918 e 1920. Diferentemente do que está acontecendo agora com a Covid-19, foi uma experiência mais privada, segundo Shaw, porque, a despeito da devastação que causara, foi ofuscada pelas consequências da própria guerra recém-terminada.

No Reino Unido, por conta da censura, pouco se lia sobre a gripe nos periódicos. Mesmo assim, cartas e reportagens daqui, e do resto do mundo, deixaram para as gerações seguintes o espírito de uma era. Anúncios que sugeriam que sair de bicicleta ajudava a evitar o vírus.

Diários falam do uso de máscaras, ou dos policiais que garantiam o isolamento social, impedindo pessoas até mesmo de se beijar na rua. Havia certa dose de humor negro e um enfoque emocional e religioso diante das perdas que se viviam desde a guerra. "É um pouco do que acontece agora quando você dispara um e-mail com aquele 'eu espero que você e sua família estejam bem’.  Mas naquela época havia menos esperança. Não havia penicilina ou tratamento. As mortes eram dolorosas, mas de certa forma mais esperadas. Agora, embora estejamos falando de uma doença desconhecida, há tratamentos e a esperança de que se encontre uma vacina em breve”, afirma.

Parte do que se passou a partir de 1918 durante a Gripe Espanhola está em livros de memórias ou romances. Mas, para Shaw, estes são meios que podem ser afetados pela memória seletiva e não ser totalmente precisos. Os relatos do passado eram menos ágeis do que os de hoje. E não é só isso: como o vírus matava de maneira dolorosa e rápida, os pacientes não tinham muito tempo para fazer registros. Isso não quer dizer, contudo, que o material digital que será legado às gerações futuras a partir de agora será mais completo e preciso.

Perspectiva histórica

A resposta, agora, pode ser mais imediata. Coloca-se nas redes o que se sente ou vê naquele exato momento. Mas, para garantir a perspectiva histórica de como a crise do coronavírus afetou a sociedade global, os estudiosos terão de saber filtrar os dados.

A despeito do que se perderá pelo caminho, o volume de informações disponíveis será monumental. Além disso, há que se considerar o fato de que os relatos podem não refletir de maneira igual as experiências humanas. Nem todo mundo tem acesso à internet. E, segundo Shaw, diferentemente do que aconteceu durante a Gripe Espanhola, que afetou a todos, o coronavírus ainda atinge sobretudo a população mais velha. “Ou seja, diferentes camadas da população vão deixar registros muito diferentes. Os idosos usam menos as mídias sociais”.

No futuro próximo, para entender o que está acontecendo hoje, pode ser até que os historiadores tenham de decodificar os novos meios de relatar para além da escrita como se conhece. Pesquisa realizada pela British Library no ano passado mostra que as pessoas vão se expressar de maneira diferente.

Perguntadas sobre "como você acha que vai cumprimentar um amigo pelo aniversário em 50 anos”, 3.552 responderam por email e mensagem de texto, 2.414 por vídeo ou mensagem de áudio. Outros 2.249 deixariam o computador mandar sozinho e 1.345 enviariam emojis. Somente 1.478 fariam cartões redigidos a mão.

Psicólogos ouvidos pela RFI garantem que o hábito de escrever sobre as crises vividas é saudável e ajuda na recuperação dos indivíduos. Muitos recomendam que, durante o confinamento da quarentena, as pessoas recorrem à palavra escrita. “Pode ajudar a expressar a ansiedade de maneira que você possa controlá-la. E isso pode ser feito ao escrever como você sente ou mantendo um diário”, afirma Elizabeth Turp em artigo para a revista da Associação Britânica para Aconselhamento e Psicoterapia.

 

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