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Com vidas em suspenso, libaneses relatam desencanto no meio da pior crise de sua história

O Líbano enfrenta neste momento a pior crise econômica de sua história, agravada pela pandemia global de Covid-19. Juntam-se à receita ingredientes como um delicado contexto político, exacerbado pelas tensões entre o Hezbollah, um aliado do Irã que domina a vida política libanesa, e os Estados Unidos, e um sistema político confessional muito antigo, baseado em clãs e articulado por milícias variadas. A RFI conversou com quatro libaneses de idades e backgrounds diferentes para saber quais são as expectativas dos cidadãos hoje no país, e seus sonhos. Ou, pelo menos, o que restou deles...

Libaneses de várias cidades do país contaram à RFI como enfrentam a crise econômica sem precedentes.
Libaneses de várias cidades do país contaram à RFI como enfrentam a crise econômica sem precedentes. © Arquivo pessoal
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No Líbano, a desvalorização da moeda nacional em relação ao dólar e o aumento do preço das mercadorias básicas destruíram o poder de compra da população, no meio da pandemia. Alimentos de primeira necessidade tiveram um aumento súbito nas prateleiras dos supermercados, privando os libaneses de produtos essenciais. Um cenário alarmante que acende o sinal vermelho para os dirigentes do país, num contexto onde tentativas de suicídio se misturam aos primeiros sinais de desespero da população libanesa.

Para complicar a situação, as negociações com o Fundo Monetário Internacional sobre uma possível ajuda financeira se degeneram. A delegação libanesa, prejudicada pelas divisões internas, não consegue chegar a um diagnóstico junto ao FMI, ou seja, não chega nem a quantificar as perdas reais e a extensão da falência do país. O setor bancário, representado nas negociações pelo governador do banco central, continua dizendo que o Líbano não está falido.

Para Firas Wehbe, 33, funcionário de um banco em Trípoli, a segunda maior cidade do Líbano, e espécie de centro nervoso das finanças do pais, a responsabilidade pela crise é de “milícias como o Hezbollah". Católico maronita, Wehbe é também secretário-geral do Conselho pelo Apostolado de Leigos no Líbano.  

Responsável no banco em que trabalha pelo crédito a pequenas empresas, ele admite que os empréstimos para a população foram congelados em 17 de outubro de 2019, quando a insatisfação popular levou multidões para as ruas dos grandes centros libaneses, e o crédito se tornou um risco que os banqueiros decidiram não assumir. “Minha opinião, que reflete a opinião de muitos libaneses, é que essa crise não é só econômica. O problema essencial é político”, afirma Wehbe.

Firas Wehbe, 33, funcionário de um banco em Trípoli, e seu filho.
Firas Wehbe, 33, funcionário de um banco em Trípoli, e seu filho. © Arquivo pessoal

"A responsabilidade é da milícia do Hezbollah”

“O problema é a presença da milícia Hezbollah, que tem projetos que nada tem a ver com o Líbano. Eles fizeram a guerra na Síria, no Iêmen, no Iraque, em toda a região”, afirma o bancário. “Essas milícias interferem em todos os detalhes da vida libanesa. Da administração aos impostos, passando pelas eleições, a distribuição da eletricidade, a higiene pública. Tudo é afetado por eles. Recentemente, decidiram mudar o modo de vida dos libaneses”, afirma Wehbe.

“Eles [do Hezbollah] convidaram os libaneses a se dirigirem ‘ao Oriente’ e não ‘ao Ocidente’. Quer dizer, em direção ao Irã, à China à Síria, e mesmo da Venezuela, que não é no Oriente Médio (risos), mas que é do mesmo tipo”, diz.

Mas, num país que depende tanto de seu sistema bancário, e cuja dolarização da economia vem produzindo catástrofes, não seria justo dividir a responsabilidade desta crise com as tradicionais oligarquias clânicas, e a elite política libanesa, cuja transparência em termos de corrupção não passa de uma incógnita? “Corrupção existe em todos os lugares do mundo. No Líbano, é bem grave”, admite. “Mas é o resultado da existência da milícia”, insiste Wehbe. “As pessoas corruptas que ocupam altos cargos na política libanesa são protegidas por essa milícia”, diz.  

O professor e guia turístico Wadih Mjaes, 30, no entanto, possui outra visão da atuação dos militantes do Hezbollah no Líbano.  Morador do vilarejo de Kaa El Rim, no Vale do Beeka, no coração do país, Mjaes formou-se em Ciências Políticas, e hoje, no meio da crise, trabalha na agência de turismo da família, além de lecionar matérias como “Civismo” e “Direito do Trabalho” em escolas técnicas pelo país.

“Uma grande parte dos libaneses apoia o Hezbollah, estamos com eles”, diz. “Precisamos deles agora que existem ameaças israelenses em nosso território, e isso acontece todo dia. O apoio militar do Hezbollah é importante para nós. Do ponto de vista político, ele também faz parte do governo, e está representado na Câmara dos Deputados. Nesse sentido, eles também são responsáveis por essa crise”, contemporiza.

Sonhos e projetos destruídos

O professor e guia turístico Wadih Mjaes, 30, morador do vilarejo de Kaa El Rim, no Vale do Beeka, no coração do país.
O professor e guia turístico Wadih Mjaes, 30, morador do vilarejo de Kaa El Rim, no Vale do Beeka, no coração do país. © Arquivo pessoal

O sonho de Wadih Mjaes – passar um tempo na França para fazer Mestrado e Doutorado em sua área, Ciências Políticas -, sonho para o qual economizava, foi temporariamente colocado em suspenso pela falência econômica libanesa. “O regime politico confessional é um grande responsável por essa crise. Nas velhas oligarquias libanesas, os políticos estão no poder há mais de 40 anos e são os mesmos que fizeram a Guerra Civil libanesa. Agora eles estão presentes no governo, na Câmara dos Deputados, nos partidos políticos libaneses. São os mesmos”, afirma Mjaes.

“Essa classe política dominante é a causa desse desastre. A dolarização da economia também se encontra na base deste problema porque o Líbano é um país que importa tudo do exterior, tudo o que vestimos, comemos, compramos, tudo é importado. Por esta razão, dependemos do dólar em nossa vida cotidiana sempre”, conta.

Entre os sonhos e projetos abandonados pelo professor, constam ainda a construção de sua casa e o desenvolvimento de sua agência. "Cogito agora ter que deixar meu país, especialmente porque fiz um transplante renal há quatro anos e não sei se poderei continuar meu tratamento no Líbano, ou encontrar meus medicamentos a preços reduzidos", relata.

Precarização da vida: o preço da dolarização da economia

“Minha vida, assim como a de todos os libaneses, é muito precária nesse momento”, afirma Wadih Mjaes. “Reduzimos o consumo de carne ao mínimo em algumas famílias. Não adianta nada ter um salário de 1 milhão de libras libanesas, se você não tem um dólar no bolso hoje”, detalha. O professor e guia continua a trabalhar em sua agência de viagem, mas, com o advento da pandemia, a profissão se tornou um verdadeiro calvário, mesmo para um país essencialmente turístico como o Líbano.

“O coronavírus acelerou a crise econômica. Tudo fechou, em dois ou três meses. Nossa família perdeu qualidade de vida, mas existem muitas outras que passam fome no Líbano. Muitas famílias da classe média migraram para as classes baixas. Vemos muita pobreza neste momento”, relata Mjaes.  

“Tenho a sorte de trabalhar numa empresa de medicamentos. Estamos entre as únicas empresas no Líbano que não pararam”, conta Colette Mhawej, que mora em Dlaibe, um vilarejo no alto de uma montanha nos arredores de Beirute, onde trabalha diariamente. "Muitos amigos não conseguem mais comprar comida, nem para eles mesmos, nem para seus filhos. Não podem mais pagar a escola; é uma situação alarmante, é o pior momento que vivo no Líbano em meus 51 anos de vida", afirma.

“Graças a Deus, ainda tenho meu salário, porque sou arrimo de família. Mas tenho muitos parentes e amigos que não tem mais trabalho”, diz. “Mas o dólar saltou de 1.500 para quase 10.000 libras libanesas, e isso afetou diretamente o preço dos produtos, legumes, da carne, de tudo o que compramos. Posso dizer a você que, hoje em dia, uso meu salário apenas para conseguir comer, não posso fazer mais nada com ele. Não posso consertar nada em casa, no carro, os preços decuplicaram, é uma catástrofe”, avalia.

"Graças a Deus, não tenho filhos"

Colette Mhawej mora num vilarejo no alto de uma montanha nos arredores de Beirute, onde trabalha diariamente em uma empresa de distribuição de medicamentos.
Colette Mhawej mora num vilarejo no alto de uma montanha nos arredores de Beirute, onde trabalha diariamente em uma empresa de distribuição de medicamentos. © Arquivo pessoal

“Graças a Deus não tenho filhos e estou solteira nesse período, porque muitos amigos que têm filhos estão muito preocupados pelo futuro das crianças, ou pela possibilidade de chegar o dia em que não possam mais lhes dar comida ou pagar por seus estudos, ou mesmo pelo material escolar. É catastrófico ter uma família neste momento”, analisa Mhawej.

“Amo muito o Líbano. Viajei para vários países do mundo. Como não tenho filhos, não tenho medo do futuro, como meus amigos que têm crianças em casa. Mas posso te garantir que a maioria das pessoas à minha volta pensa em deixar o país ou enviar seus filhos para estudar fora, em qualquer outro lugar que não seja o Líbano”, conta.

“Não existe futuro aqui. Não tem trabalho, nem dinheiro. Estamos cortados do mundo. Não posso largar minha mãe aqui, mas te asseguro que todas as pessoas com filhos, se algum país lhes der um visto e se eles tiverem euros ou dólares no bolso, eles irão embora”, atesta.

Colette Mhawej acredita ainda que os responsáveis pela “catástrofe libanesa” são os chefes políticos que lideraram o país nos “últimos 30 anos”. “Fizeram acordos e arranjos juntos. Destruíram todas as instituições governamentais, não existe mais nada para ser roubado, realmente. Não é culpa dos bancos. Não defendo o responsável no Banco Central, mas ele foi manipulado por todos que passaram pelo governo, deu dinheiro para cobrir os roubos”, diz.

O desencanto da juventude libanesa

Para a estudante de Jornalismo, Nayla Saad, 26, só existe hoje um desejo possível: partir, ir embora.
Para a estudante de Jornalismo, Nayla Saad, 26, só existe hoje um desejo possível: partir, ir embora. © Arquivo pessoal

Para a estudante de Jornalismo, Nayla Saad, 26, só existe hoje um desejo possível: partir, ir embora. Ela vive em Dlaybe, um vilarejo no Monte Líbano, famosa cadeia de montanhas que divide o país. No entanto, os protestos de outubro de 2019 contaram com a adesão da jovem. Saad, que também é formada em Literatura Árabe pela Universidade do Líbano, termina seu novo curso em duas semanas.

“Sim, participei das manifestações, fui várias vezes para as ruas, porque foi a primeira vez em que sentimos que tínhamos a opção de começar a mudar nosso país. O Líbano precisa que todos os libaneses que ficaram comecem a fazer e ver mudanças”, afirma a futura jornalista. “O que aconteceu no Líbano em 17 de outubro foi que os libaneses mostraram que estão fartos dessa política que começou há 30 anos”, indigna-se Saad.

Para Nayla Saad, a crise econômica no Libano não é “uma coisa de agora”. “É uma crise antiga, que começou certamente após a Guerra Civil. Quando o conflito termina, existe um déficit do Estado libanês. Ninguém sabe para onde foi esse dinheiro, mas cada político é responsável pelo que se passa hoje no Líbano”, diz. “Desde os anos 1990 não existe mais moeda libanesa, ela foi implodida. Os chefes políticos são os responsáveis por essa crise”, afirma.

“A vida aqui não é nada fácil, e especialmente para jovens que querem começar a construir seu futuro”, conta. “Claro que minha vida é considerada precária porque não há mais nada a fazer aqui, economicamente falando, ou sociologicamente. Não podemos viver nossas vidas adequadamente. Já havia muitos problemas antes de 17 de outubro, e esse foi o principal motivo dos protestos”, relata.

"Disseram-nos quando éramos pequenos que a convivência é necessária, mas aqui ninguém pode mais viver com o outro, todo mundo quer apenas poder, e os pobres são as principais vítimas desse sistema", conta a libanesa. “Minha família apoia minha decisão de deixar o Líbano, porque eles sabem que esta é a única escolha possível agora", reitera.

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