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“Áspero e turbulento”, Bob Dylan lança 39° álbum de estúdio em sintonia com o futuro

Nunca se viu um “áspero e turbulento” tão doce e inspirado. A lenda viva Bod Dylan, 79, lança nesta sexta-feira (19) o seu 39° álbum de estúdio, “Rough and Rowdy Ways”, o primeiro desde que recebeu o Nobel de Literatura, em 2016. Com a metralhadora giratória de referências sempre afiada, Dylan retoma sua cosmogonia de canções épicas enraizadas na tradição do cancioneiro popular norte-americano, na folk music, no blues, no gospel e no rock’n’roll. Agora e sempre, com ingredientes políticos que já pontuaram vários momentos de sua longa estrada.

Várias das canções de Bob Dylan dos anos 1960 e 1970 abordaram questões de brutalidade policial e racismo, incluindo "Hurricane" e "George Jackson".
Várias das canções de Bob Dylan dos anos 1960 e 1970 abordaram questões de brutalidade policial e racismo, incluindo "Hurricane" e "George Jackson". AFP/File
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“Fiquei, sim”, respondeu um (normalmente) monossilábico Bob Dylan ao jornal The New York Times, quando perguntado se ele se espantava com o fato de “Murder Most Foul”, canção de 17 minutos, inédita do novo álbum, tê-lo colocado pela primeira vez em sua carreira no topo de uma lista da Billboard, publicação que faz as vezes de meca norte-americana da indústria do disco.

Disponível a partir desta sexta-feira apenas em plataformas de streaming no Brasil, as 10 canções de “Rough and Rowdy Ways” propõem uma viagem alucinante e incrivelmente doce a universos simbólicos e a lugares complexos como apocalipse, reinados desfeitos, parábolas, crimes perfeitos, esperança, juízo final. Os fantasmas do passado, exorcizados ou não, sempre estão presentes na discografia desse bardo nascido no Minnesota.

Na longa canção-parábola de 17 minutos que o catapultou ao topo da lista dos mais ouvidos, a metáfora sobrevoa o assassinato do ex-presidente John F. Kennedy em 1964, em Dallas, nos Estados Unidos, para sobrepor presente, passado e futuro. O título, “Murder Most Foul”, é uma referência direta aos versos de Shakespeare em “Hamlet”, quando o velho fantasma conta a seu filho sobre seu assassinato: “Murder most foul, as in the best it is” (“O assassinato mais imundo é o melhor”, em tradução livre).

Dylan, um bardo norte-americano

Bob Dylan representou, ao longo de sua carreira, a (muitas vezes sangrenta) complexidade da identidade e da vida norte-americanas. Muitas de suas músicas da década de 1960, como "Desolation Row" ou "Stuck Inside of Mobile", se propuseram ao desafio de espelhar seja o brilho, seja o lado obscuro da vida nos EUA. Racismo e violência policial nunca foram excluídos de seu cardápio musical, como em “George Jackson” ou “Hurricane”.

O novo disco segue esta linhagem, esse parentesco/paralelo com o que o gigante norte-americano possui de mais sórdido, e também de mais poderoso, em tempos de Donald Trump. “Business is business”, canta o bardo, em “Murder most foul”. Mas os olhos de Bob Dylan não são nostálgicos. Seu compromisso parece ser com o futuro, especialmente no novo disco. “Temos uma tendência a viver no passado, mas isso somos nós. Os jovens não têm essa tendência. Eles não têm passado”, argumentou Dylan ao The New York Times em raríssima entrevista exclusiva, uma semana antes do lançamento de “Rough and Rowdy Ways”. “Nosso mundo já é obsoleto”, disse.

A revista Rolling Stone considerou o álbum um "clássico absoluto", chamando-o de um dos "álbuns mais oportunos de Dylan". "Enquanto Dylan faz 80 anos, sua vitalidade criativa permanece surpreendente - e um pouco assustadora", escreveu o crítico Rob Sheffield. Sempre dinâmico, Dylan não parou de sair em turnês nos últimos 30 anos, apesar das quase oito décadas de vida. Exceção feita a partir da crise do coronavirus, que o obrigou a cancelar uma série de datas no Japão e na América do Norte, mas ele prometeu voltar à estrada assim que for "seguro" fazê-lo.

Na sequência de canções do novo disco, "Mother of Muses" homenageia a natureza, com coros evangélicos, "que abriram caminho para Presley cantar / que abriram caminho para Martin Luther King". E "Key West (Philosopher's Pirate)", sobrevoa a questão da imortalidade. Sim, Bob Dylan parece começar, nas vésperas de seus 80 anos, a refletir sobre a questão. Não a sua própria mortalidade, “mas a da humanidade como um todo”, segundo declarou à imprensa norte-americana. Nesta canção, Dylan também presta homenagem a velhos conhecidos, como os beatniks Ginsberg e Kerouac.

"Multitudes"

A canção “I Contain Multitudes” , lançada em abril, traz mais uma vez referências literárias, numa alusão aos belos versos do poema de Walt Whitman, “Song of Myself”: “Do I contradict myself? Very well then I contradict myself, (I am large, I contain multitudes.)”, algo como “Estou me contradizendo? Muito bem, então eu me contradigo (sou extenso, eu contenho multidões).”

“As flores estão morrendo. Eu vou direto para o abismo”, diz Dylan em “I Contain Multitudes”, uma balada suave com cordas melódicas, como se o apocalipse desfilasse entre a doçura. Dylan se permite citações a Indiana Jones, Anne Frank e aos Rolling Stones no mesmo verso de suas "multitudes".

E, talvez, “multitudes” seja mesmo o epíteto perfeito para este compositor e poeta único, que fascina e embala o mundo com suas letras e sua polifonia sonora e imagética há mais de meio século.

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