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Linha Direta

Ruanda lembra genocídio com acusações à França

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O governo de Ruanda retirou as credenciais do embaixador francês Michel Flesch impedindo assim que ele representasse a França na cerimônia desta segunda-feira (7), em Kigali, para lembrar os 20 anos do genocídio ruandês. O massacre resultou na morte estimada de 800 mil a 1 milhão de integrantes da etnia tutsi e também dos hutus considerados moderados.

Uma chama no Memorial do Genocidio de Gisozi, em Kigali, marca nesta segunda o início de um luto de cem dias pela data.
Uma chama no Memorial do Genocidio de Gisozi, em Kigali, marca nesta segunda o início de um luto de cem dias pela data. REUTERS/Noor Khamis
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Com Rafael Araújo, correspondente da RFI na África,

O embaixador Michel Flesch iria representar a ministra da Justiça, Christiane Taubira, que cancelou sua viagem à capital ruandesa após as declarações do presidente de Ruanda, Paul Kagame, a uma revista semanal dirigida ao público africano.

Na entrevista, o presidente ruandês acusa a França e a Bélgica de terem desempenhado um papel direto na “preparação política do genocídio”.
A França, aliada do governo hutu na época, sempre negou qualquer implicação no massacre, considerado um dos mais graves da história do século 20.

No comunicado para a imprensa, o ministério das Relações Exteriores da França declarou ter ficado surpreendido em relação às acusações, pois estariam “em contradição com o processo de diálogo e reconciliação engajado pelos dois países”.

Incidente diplomático

Antes mesmo da revista Jeune Afrique chegar às bancas, nesta segunda-feira, os portais franceses e internacionais de notícias já tinham acesso ao trecho da entrevista que causou o incidente diplomático entre Kigali e Paris, informa o correspondente da Rádio França Internacional na África, Rafael Araújo.

Segundo ele, Paul Kagame diz com todas as letras que a França só admite ser criticada por não ter feito o suficiente para salvar vidas durante o genocídio. “Mas, na verdade, isso mascara o fato de que a Bélgica e a França teriam participado da preparação política do genocídio e, essa última, também da execução”, disse o presidente.

Quando a repórter retoma o que ele disse por último e pergunta “participação ou cumplicidade?” Ele responde. “Os dois”. Na entrevista, o presidente ruandês faz referência ao massacre de Bisisero, em junho de 94, explica o jornalista Rafael Araújo.

Kagame sugere que os soldados franceses da Operação Turquesa teriam sido não apenas cúmplices, mas também atores dos massacres cometidos em Bisisero e também em toda a área chamada de “segurança humanitária”, instaurada ao sul de Kigali.

Papel das potências ocidentais ainda é mal explicado

Paul Kagame cita a França quando o repórter da revista Jeune Afrique pergunta por que ele acha que fora de Ruanda as pessoas não têm a dimensão exata do que aconteceu em 94. O chefe de Estado responde que “além das experiências serem diferentes ainda há assuntos que são tabu, como a participação-chave de potências ocidentais nos acontecimentos da época”.

De acordo com Rafael Araújo, Paul Kagame deixa ainda bem clara sua oposição à ingerência externa no país. “Eu não aconselho ninguém a se intrometer nos nossos assuntos internos”, disse. “Isso vale para a África do Sul, mas também para Tanzânia, França, Bélgica, a mídia e as ONGs que têm um prazer em soprar a brasa” – quer dizer, em bom português, jogar lenha na fogueira.

Paul Kagame está no segundo mandato de sete anos, que acaba em 2017. A constituição impede uma nova reeleição, mas aos 56 anos de idade, ninguém acredita que ele deixará o cargo, afirma o correspondente da RFI. Kagame é acusado pelo ocidente de governar com mão de ferro o país das mil colinas, como Ruanda é conhecida por causa da sua geografia que se destaca na região dos Grandes Lagos.

Responsabilidade da França e da Bélgica

Antes de ser ministro da Defesa e presidente da república, Paul Kagame foi o homem que comandou o Frente Patriótica Ruandesa, a FPR, que invadiu Ruanda em 1990 para derrubar o governo hutu e reconquistar o poder para a etnia tutsi, que reinou durante séculos o país até a chegada dos Belgas.

Foi o exército de Paul Kagame que impediu que a “solução final” dos extremistas hutus da milícia chamada “interahamwe”, a mais importante durante o genocídio, fosse completada. Mesmo assim, 800 mil tutsis foram massacrados, a maioria a golpes de facão, num plano minucioso de exterminação da população tutsi que vinha sendo arquitetado havia pelo menos três meses pelo governo hutu, lembra Rafael Araújo.

Um telegrama do comandante da missão de paz, coordenada pela França, ao secretário-geral das Nações Unidas relatando o fato, que data de janeiro daquele ano, virou uma peça histórica e uma prova do descaso da ONU.

Acusação de preparação política

Paul Kagame, ao falar de “preparação política do genocídio”, pode estar se referindo à época colonial, avalia o jornalista da RFI. A Bélgica herdou o território de Ruanda como espólio da primeira guerra mundial e também estudos antropomórficos da população, que mediam o tamanho do nariz, da testa e altura para classificar os habitantes da região de acordo com o tipo físico.

Mas os belgas foram além e fizeram um censo da população e promoveram a identificação por etnia. E para melhor governar a colônia, exploraram a divisão e o ódio entre eles, explica Rafael Araújo. Na origem, os termos tutsi e hutu não se referiam a grupos étnicos, e serviam para designar a atividade principal da pessoa: tutsi, pecuarista, e hutu, lavrador.

Já no caso da França, afirma o correspondente, Kagame pode estar se referindo ao apoio militar do governo francês ao regime hutu nos anos que precederam o genocídio. O fato da operação Turquesa, com 2.500 soldados franceses, ter se interposto entre a FPR Frente Patriótica Ruandesa, de Paul Kagame e os genocidas da milícia interahmwe, foi fonte de muitas críticas.

A chamada “zona de segurança humanitária”, criada pelos franceses ao sul de Kigali, não impediu que os massacres de tutsis continuassem, como foi o caso de 65 mil refugiados na colina de Bisisero. Além disso, afirma Rafael Araújo, a área possibilitou a fuga do exército genocida para a região do Kivu, na República Democrática do Congo, onde continuam a praticar crimes hediondos contra a população civil até hoje.
 

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