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Punição de militares franceses que ameaçaram intervenção expõe limites da liberdade de expressão nas Forças Armadas

Os 19 generais da reserva francesa signatários de um texto no qual conclamam uma “intervenção dos camaradas da ativa", caso o governo não tome medidas contra o suposto “declínio" do país, passarão por um conselho militar superior e devem ser punidos pela publicação. A polêmica levanta um debate sobre os limites à liberdade de expressão nas Forças Armadas na França, onde as manifestações políticas dos homens de farda, inclusive da reserva, não são toleradas.

O general do Exército francês Christian Piquemal (C) teve a aposentadoria antecipada depois de participar de um protesto do movimento alemão Pegida (europeus patrióticos contra a islamização do Ocidente), um ato proibido ocorrido em Calais, no norte da França, em 6 de fevereiro de 2016.
O general do Exército francês Christian Piquemal (C) teve a aposentadoria antecipada depois de participar de um protesto do movimento alemão Pegida (europeus patrióticos contra a islamização do Ocidente), um ato proibido ocorrido em Calais, no norte da França, em 6 de fevereiro de 2016. AFP - PHILIPPE HUGUEN
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O texto que provocou a discussão foi publicado na semana passada, na revista ultraconservadora Valeurs Actuelles. Munidos de eufemismos, os signatários conclamam o governo francês a “erradicar os perigos” que estariam levando o país à “desintegração"  e até a uma guerra civil. As ameaças, segundo o artigo, são o “islamismo, as hordas das periferias [habitadas majoritariamente por imigrantes e seus descendentes], um certo antirracismo”.

As palavras foram apoiadas pela líder da extrema direita Marine Le Pen, mas condenadas pela ministra da Defesa, Florence Parly, que pediu ao chefe do Estado-maior das Forças Armadas, general François Lecointre, que os envolvidos fossem punidos.

Foi ele quem anunciou, em entrevista ao jornal Le Parisien, que os generais de segunda seção, ou seja, próximos da aposentadoria, poderão ser obrigados a se afastar da carreira mais cedo. Um dos signatários, Christian Piquemal, ex-comandante da Legião Estrangeira, já foi aposentado antecipadamente em 2016, depois de participar de um protesto contra a imigração. Os outros serão levados a um conselho superior militar, por contrariar o dever de absoluta neutralidade política da função.

“Eles sabiam muito bem que estavam assumindo uma postura política [ao assinar o texto], e isso eu não posso aceitar, porque a neutralidade das Forças Armadas é essencial. Fiquei chocado ao ler um apelo aos militares da ativa, que me revoltou profundamente”, explicou a autoridade máxima militar francesa abaixo do presidente Emmanuel Macron.

“Eu vou enviar uma carta [ao general Piquemal] para dizer-lhe que ele é indigno, suja as Forças Armadas e a fragiliza, ao torná-la objeto de uma polêmica nacional”, criticou o chefe do Estado-maior, em relação ao ex-colega, que desde a aposentadoria antecipada, toma partido em fóruns de extrema direita e teorias do complô sobre a suposta invasão de muçulmanos na Europa.  “Eu lhes proíbo, a todos, o direito de se engajarem na política ressaltando as suas patentes”, frisou Lecointre.

François Lecointre,  chefe do Estado-maior das Forças Armadas da França, anunciou que os militares que assinaram o texto serão sancionados.
François Lecointre, chefe do Estado-maior das Forças Armadas da França, anunciou que os militares que assinaram o texto serão sancionados. AFP - JOEL SAGET

Passagem por conselho superior já causa danos à carreira

Em caso de decisão pelo afastamento dos generais, apenas o presidente tem o poder de assinar a medida, após a deliberação do conselho militar superior – uma seção extremamente rara que, por sua mera realização, já representa uma humilhação e suja a carreira dos envolvidos.

“Alguns desses generais têm 70 anos e deixaram as Forças Armadas há 20 anos, onde nunca tiveram um papel central para a nossa defesa. Foi um texto de velhos rabugentos e reacionários, que idealizam uma França do passado, mas que foi alvo de uma instrumentalização política que suscitou toda essa polêmica”, disse à RFI o general Jérôme Pellistrandi, redator-chefe da revista Défense Nationale.

Além destes, cerca de 100 militares com altas patentes e mais 1.300 soldados, pelo menos, também assinaram o artigo, publicado originalmente em um site especializado. Não está claro, até o momento, quantos deles estão na ativa. Neste caso, as sanções para cada um serão avaliadas conforme a graduação: quanto maior a patente, mais severa é a punição, que pode ser disciplinar ou até penal. Condenações a penas superiores a três meses de prisão levam à perda da patente.

Direito limitado à se exprimir em público

“Os militares na ativa podem ter suas convicções, é claro, mas eles não têm direito de expressá-las. É muito claro”, resumiu o general Dominique Trinquand, ex-chefe da missão francesa na ONU, em entrevista à emissora BFMTV.

“Eles questionaram a instituição militar, em um período delicado. Portanto, cometeram um erro e este erro deve ser sancionado”, acrescentou Pellistrandi à RFI. “É claro que eles podem participar ao debate político enquanto cidadãos, mas eles não podem dar lição de moral, por serem generais, e exigirem qualquer mudança política”, esclareceu o redator-chefe da revista Défense Nationale.

Na França, é apenas na aposentadoria, quando não possuem mais nenhum vínculo com as Forças Armadas, que os militares têm direito à livre expressão política, inclusive a se candidatar em uma eleição. “Um militar pode ter de responder quando suas declarações atingem a imagem do governo ou de seus funcionários, e quando ele ultrapassa a esfera privada. No entanto, as sanções devem ser proporcionais, do contrário podem ser anuladas pelas jurisdições administrativas”, explicou a advogada Élodie Maumont, especialista em direito militar, ao jornal Le Figaro.

Já o Direito penal prevê de dois a cinco anos de detenção para o militar na ativa que “incitar, por qualquer meio, um ou mais militares a cometer atos contrários ao dever ou à disciplina”. “Politicamente, este artigo pode chocar, mas não tenho certeza de que ele possa resultar em uma ação penal”, afirmou a especialista.

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