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“Como um pai pode fazer isso com sua própria filha?”: vítimas de incesto denunciam agressores em redes sociais na França

Depois do #MeToo, a França é palco de um grande movimento contra o incesto. No último fim de semana, milhares de testemunhos invadiram as redes sociais, colocando em evidência o fracasso das autoridades em lidar com a questão.

Imagem ilustrativa
Imagem ilustrativa © Pixabay
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“Eu tinha 15 anos. Como um pai pode fazer isso com sua própria filha? O efeito bumerangue chegou apenas aos 50 anos. Minha condenação = traumatizada para sempre, com tentativas de suicídio recorrentes”, afirma a internauta Jackye Gonin no Twitter.

O depoimento desta francesa não é o único. As redes sociais são palco desde sábado (16) de milhares de testemunhos, depois que duas militantes do coletivo feminista francês “Nous Toutes” lançaram a iniciativa de denunciar esse tipo de abuso, através de testemunhos acompanhados pela hashtag #MeTooInceste. A mobilização faz referência ao #MeToo, movimento contra o assédio e violências sexuais a mulheres lançado em 2017 nos Estados Unidos que ganhou versões em vários países.

A iniciativa veio à tona após um escândalo que sacudiu a França recentemente. No início de janeiro, o célebre cientista político Olivier Duhamel foi acusado de incesto por sua enteada, a jurista Camille Kouchner. No livro “La Familia Grande”, ela conta as agressões sexuais das quais o irmão gêmeo foi vítima, aos 14 anos, por parte deste famoso intelectual francês, nos anos 1980.

Apesar da forte comoção que suscitou, o episódio não é exceção na França. De acordo com uma pesquisa recente, 6,7 milhões de franceses foram vítimas de incesto – entre eles, 78% são mulheres. Os agressores são, em sua maioria, o próprio pai, avô, tio, irmão ou primo da vítima.

Em comum entre todas essas histórias vivenciadas por crianças de 5, 10, 15 anos, violências sexuais e estupros que ocorreram dentro de suas próprias casas - situações que podem se repetir durante vários anos. Muitos casos acontecem sob o conhecimento de mães ou avós, que preferem se calar a enfrentar o problema.

Além disso, as vítimas que denunciam os abusos nas redes sociais fazem parte de faixas etárias variadas, o que mostra que o problema atravessou décadas e continua a assombrar a vida de crianças. Militantes afirmam que em cada sala de aula da França, dois ou três alunos são vítimas de incesto.

O peso do silêncio

O francês Guillaume foi muito além das redes sociais e falou ao canal de TV France 2 sobre as agressões sexuais que sofreu da parte do pai, quando tinha pouco mais de quatro anos de idade.

“Geralmente acontecia no meu quarto, à noite, quando minha mãe estava dormindo. Às vezes, durante o dia, quando estava sozinho com meu pai. Eu cresci com isso, cresci com o peso desta história e o peso do silêncio”, relembra.

Além da violência sexual, as crianças vítimas de pedofilia nas famílias são facilmente manipuladas. Guillaume faz parte dos 84% dos casos em que os menores são pressionados a manter o silêncio, segundo dados da associação francesa Face à L’Inceste (Diante do Incesto).

“Meu pai me dizia que se eu falasse para alguém sobre isso, teria problemas. Quando você diz isso para uma criança de quatro anos e meio, cinco anos, ela obedece. O que me impediu de falar sobre isso foi o medo de ter problemas, o medo de destruir minha família”, ressalta.

Depoimento de Guillaume, vítima de incesto, reportagem TV France 2
Depoimento de Guillaume, vítima de incesto, reportagem TV France 2 © Captura de tela

Guillaume foi estuprado durante vários anos. Foi somente aos 27 que teve coragem de denunciar os abusos, pouco antes da morte do pai. Segundo ele, durante a vida adulta “o verdadeiro pesadelo começou”.

“Isso abriu a porta a angústias, ao transtorno obsessivo-compulsivo, de arrumação, de limpeza. Eu limpava o banheiro quatro vezes por dia com água sanitária. Eu lavava o corpo com água sanitária. Tentei me suicidar cinco ou seis vezes”, diz.

Mais de 25 anos depois dessas agressões, Guillaume continua a enfrentar as consequências do incesto. Há dois anos, está desempregado. No entanto, acredita que ter sido forte o suficiente para superar esse sofrimento.

“Se tenho a sorte de ter chegado até aqui hoje, foi graças à força que eu desenvolvi. Não são todos que conseguem se recuperar disso. E eu consegui”, conclui.

“Ninguém está preparado para ouvir”

Em entrevista à RFI, Madeline Da Silva, uma das idealizadoras da iniciativa #MeTooInceste do coletivo Nous Toutes, afirmou que o objetivo era atrair a atenção da sociedade e mostrar ao governo a urgência de instituir políticas públicas contra esse problema.

A militante recusa a ideia do silêncio das vítimas sobre o incesto. No sábado, poucas horas após a criação da hashtag, cerca de 15 mil tuítes traziam à tona testemunhos sobre as violências sexuais vividas nas famílias. Nesta segunda-feira (18), as denúncias seguiam se multiplicando nas redes sociais.

“Os depoimentos continuam sendo publicados e vão continuar. O silêncio relacionado ao incesto não vem da parte das vítimas. Afinal, as crianças falam sobre isso, algumas através de palavras, outras através de sintomas que mostram seu sofrimento. Mas o problema hoje na França é que quase ninguém está preparado para ouvir e compreender esses sintomas para cessar essas violências”, afirma.

As militantes também denunciam a falta de propostas do governo sobre a questão. Desde que o escândalo Duhamel veio à tona, nem o presidente francês, Emmanuel Macron, nem o primeiro-ministro Jean Castex, reagiram.

No domingo (17), em entrevista ao canal TF1, a primeira-dama Brigitte Macron fez um apelo em prol de uma reforma da Justiça para lutar contra o incesto na França. Já o secretário de Estado para a Infância, Adrien Taquet, descreveu recentemente o incesto como “um crime sem cadáver” e antecipou o lançamento em breve de uma comissão sobre o tema. No centro dos debates, está também a questão do consentimento, além da prescrição do crime, limitada a 30 anos depois que a vítima atingiu a maioridade.

A lei francesa estabele hoje que qualquer ato sexual entre um adulto e um menor abaixo de 15 anos é um ataque sexual, passível de sete anos de prisão e uma multa de € 100 mil. Caso um ato sem penetração seja cometido sem o consentimento de uma vítima menor de 15 anos, o crime é qualificado de agressão sexual, que pode ser punido com dez anos de prisão e € 150 mil de multa. Já uma penetração sem consentimento de um menor de 15 anos é considerada estupro, passível de 20 anos de prisão.

“Atualmente, o dispositivo que existe questiona o comportamento da criança, já que se analisa a questão de seu consentimento. Ora, todos nós constatamos a assimetria entre uma criança e um adulto”, afirma o secretário de Estado para a Infância, Adrien Taquet, ao jornal Le Parisien. Ele garante que o governo está trabalhando sobre o problema: “Não está relacionado à mobilização, mas isso traz o sentimento de que é preciso mudar as coisas, que o trabalho que estamos realizando deve continuar e se intensificar”.

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