Acessar o conteúdo principal

Entre expectativa e críticas, Houellebecq lança novo romance político de antecipação na França

O timing do premiado escritor Michel Houellebecq, considerado o maior romancista francês contemporâneo, parece sempre afinado com seu tempo. Depois de "Submissão" (2015), onde o autor descreve a ascensão de um presidente francês muçulmano, lançado no dia do atentado na sede do jornal Charlie Hebdo, e "Serotonina" (2019), que preconizava um antidepressivo mágico para tempos perversos, "Anéantir", que pode ser traduzido como "Aniquilar", imagina agora uma campanha presidencial na França de 2027.

Entre expectativa e críticas, Houellebecq lança "Anéantir" ("Aniquilar", em tradução livre) novo romance político de antecipação na França.
Entre expectativa e críticas, Houellebecq lança "Anéantir" ("Aniquilar", em tradução livre) novo romance político de antecipação na França. © Divulgação
Publicidade

Para coroar mais um ano pandêmico no Hexágono, forma geométrica através da qual os franceses gostam de identificar seu país, nada como um bom, duro e melancólico romance de Michel Houellebecq, entre um teste de coronavírus e uma champanhe distópica, no meio de poucos ou nenhum amigo, nas temperaturas estranhamente agradáveis deste inverno francês. Entre thriller filosófico e ficção de mistério, as mais de 700 páginas do oitavo romance de Houellebecq abrem-se lentamente, dentro de "enormes cubículos de vidro e aço", onde "especialistas em segurança examinam ataques cibernéticos", intrigados com um conjunto de figuras geométricas e símbolos esotéricos que o escritor reproduz, no início do romance.

A cena se passa em Paris no final de 2026, mas poderia ser em qualquer lugar do mundo: a vibração que emana das linhas sempre aparentemente gélidas do escritor francês ecoam as de um filme de suspense norte-americano. Um político se estabelece no centro da intriga, o "Ministro da Economia e Finanças", predestinado a ser presidente da República. E alguma semelhança com a França e a trajetória de Emmanuel Macron não será mera coincidência. Pelo menos, nunca o é, nas páginas sorrateiras dos romances do autor multipremiado, e traduzido no Brasil pela Cia das Letras.

Embora situado no mundo da política parisiense, Houellebecq pondera questões importantes em "Anéantir", como a morte, como lidamos com questões de saúde e o significado de fazer parte de uma sociedade que vive em grande parte sem o lastro espiritual fornecido pela religião. Embora o autor francês tenha se construído como escritor à base de personagens frequentemente niilistas e obcecados por sexo em livros como "Atomizado" ou "Plataforma", a última obra deste enfant terrible da literatura francesa contém traços de amor, e até de esperança. "Não há necessidade de se celebrar o mal para ser um bom escritor", declarou Michel Houellebecq ao jornal Le Monde nesta quinta-feira (30).

Elegia do dissenso

Incensado pelo jornal Libération ("livro sublime que oscila entre o trágico e a ironia sem perder a esperança") e demolido pela crítica da revista Nouvel Obs ("bocejamos entre uma página e outra desse 'Código Da Vinci' à base de morfina"), ou ainda ocupando toda a capa do tradicional jornal Le Figaro desta quinta-feira, "Anéantir" chega às livrarias francesas em uma primeira tiragem de 300.000 cópias na primeira semana de 2022 já revestido da matéria-prima que o famoso escritor, acusado algumas vezes de racista e misógino, domina tão bem: a polêmica e o dissenso. Como na maioria de suas obras anteriores, não existe "redenção" ou "catarse", a não ser aquelas que emergem da ironia fulgurante da pluma houellebecquiana.

O autor francês provou com "Submissão", em 2015, que adora os romances de antecipação, ao imaginar a eleição de um presidente da República muçulmano. A publicação do livro coincidiu com o atentado cometido por dois jihadistas contra o jornal satírico Charlie Hebdo, que deixou 12 mortos em Paris, entre eles seu amigo pessoal, o economista Bernard Maris, executado sumariamente junto com os outros cartunistas e equipe na sede da publicação. Uma semana depois dos ataques em Paris, Michel Houllebecq, que havia interrompido voluntariamente a divulgação do livro, afirmou ao jornal italiano Il Corriere della Sera que nada mais seria "como antes". Mas o marketing macabro que parece acompanhar seus últimos livros não pára por aí: em “Plataforma”, lançado alguns dias antes do atentado de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, um nostradâmico Houellebecq faz menção, no capítulo final, a um ataque de islâmicos radicais.

"Magnífico animal político"

Jamais citado em "Anéantir", o atual presidente francês, Emmanuel Macron, é facilmente reconhecível quando um assessor de comunicação o descreve como "um magnífico animal político", sempre muito animado "desde o início de sua ascensão meteórica". Ele governou um país "em declínio", atormentado pela desigualdade, pela morte lenta de pequenas cidades e áreas rurais e pelo desemprego persistente. “A distância entre as classes dominantes e a população atingiu um nível sem precedentes”, alarma-se o narrador.

Em 2027, a esquerda quase não existe, o partido nacional de extrema direita Reunião Nacional - presidido hoje por Marine Le Pen - ainda é forte no primeiro turno, mas se embaralha no segundo, enquanto a extrema direita de Éric Zemmour, que está sacudindo a campanha presidencial deste ano, atrai apenas ódio ou admiração. Elementos que parecem remeter diretamente a 2022. Mas o novo romance político de Houellebecq põe no centro da narrativa o Ministro da Economia Bruno Juge, e seu conselheiro especial, Paul Raison. Raison, um homem de 49 anos, servidor do Estado e da maioria presidencial, de ânimo sereno embora mergulhado numa crise conjugal sem fim, desiludido com o seu fatalismo e com a sua predileção consciente pelo conforto burguês, é o protagonista do romance.

No novo romance de Houellebecq, em 2027 Jean-Marie Le Pen ainda está vivo, com quase 99 anos, e sua filha Marine cede lugar a uma candidata mais jovem do que ela para as eleições presidenciais [a sobrinha dissidente Marion Maréchal Le Pen?]. O aquecimento global torna os verões muito longos. O terrorismo islâmico é muito menos ameaçador em território francês, e outros movimentos o suplantaram no quesito violência política.

Eutanásia e fim de vida

Mas "Aniquilar", que surge em meio ao ressurgimento da pandemia de Covid-19, é acima de tudo um grande romance sobre questões de saúde, medicina e sobre o fim de vida. O narrador se vê subjugado pela questão da morte em nossas sociedades ocidentais: como a colocamos de lado, como vivenciamos a de nossos entes queridos, como apreendemos o que virá depois dela. Sempre polêmico, Houellebecq se posiciona mais uma vez contra a eutanásia.

Os temas acima acabam alcançando o protagonista Paul Raison, que se contentava em viver sem fé, sem questionamentos espirituais, e que sente o vazio deixado pelo "colapso do Cristianismo". Eles oferecem ao romance um final sublime e lírico em que a intriga política desaparece e dá vazão a toda a potência da prosa de Michel Houellebecq, entre provocação e ficção.

(Com AFP)

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.