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Infectologista: “É incompreensível abrir bares, shoppings e igrejas, e manter as escolas fechadas.”

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No Brasil, na França e em diversos países do mundo, a questão sobre a reabertura das escolas está colocada, enquanto não há vacina para combater o coronavírus. Os estudos científicos sobre a contagiosidade das crianças são contraditórios e levantam dúvidas sobre a segurança da medida.

Infectologista pediátrico Marco Aurélio Sáfadi, do Hospital Infantil Sabará, de São Paulo, é professor doutor da Escola de Ciências Médicas da Santa Casa (SP).
Infectologista pediátrico Marco Aurélio Sáfadi, do Hospital Infantil Sabará, de São Paulo, é professor doutor da Escola de Ciências Médicas da Santa Casa (SP). © ©Hospital Infantil Sabará/ divulgação
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A tomada de decisão é complexa: inclui não apenas o risco para as crianças e suas famílias, como o estágio de controle da epidemia na região e os impactos do isolamento prolongado no desenvolvimento infantil. O infectologista pediátrico Marco Aurélio Sáfadi, do Hospital Infantil Sabará, de São Paulo, aponta o exemplo "exitoso" da Europa no tema.

"A experiência europeia mostrou, de uma maneira muito contundente, que o retorno às escolas, especialmente nos primeiros anos da escolaridade, não foi acompanhado de resultados preocupantes – pelo contrário”, ressalta o professor doutor da Escola de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, onde dirige o departamento de Pediatria.

Para isso, frisa Sáfadi, é preciso que as taxas de transmissão estejam sob controle, como ocorreu nos países europeus, que voltaram progressivamente às aulas quando o número de casos diários passou a cair. “Pode até ter um ou outro caso, eventualmente algum surto, mas aconteceu de uma forma muito tímida, irrelevante”, afirma. “É incompreensível abrir bares, shoppings centers e igrejas, que têm seguramente um risco muito maior, e manter as escolas fechadas.”

Agora, em plena volta às aulas no continente europeu, a dúvida volta a pairar já que, durante as férias de verão, os contágios subiram. A França registra o maior número de casos diários desde que enfrentou o pico da epidemia. Na Alemanha, pelo menos duas escolas já foram fechadas uma semana depois de reabrirem, após a identificação de uma criança e uma professora infectados com a Covid-19. 

Contagiosidade das crianças

Para o pediatra e infectologista brasileiro, a provável baixa contagiosidade das crianças, demonstrada por diferentes estudos na França, na Itália, na Coreia do Sul e no Reino Unido, é um fator que deve ser considerado na adoção da medida. Desde maio, essas pesquisas indicavam que as crianças, sobretudo as menores de 10 anos, transmitiam muito pouco a doença tanto para outras crianças, quanto para os adultos – uma conclusão que embasou governos a reabrir creches e escolas de ensino fundamental.

"A grande maioria dos adultos infectados terá sintomas. Mas entre as crianças é o inverso: a grande maioria não terá sintoma algum. Tossir, espirrar, ter coriza são manifestações que já trazem maior expectativa de facilidade de transmissão do vírus em uma comunidade”, explica o especialista. "Creio que evoluir de uma forma assintomática minimiza os mecanismos de transmissão do vírus para seus contactantes e esse aspecto não pode ser negligenciado nessas análises.”

Entretanto, pesquisas mais recentes, realizadas nos Estados Unidos, sugerem o contrário. Um estudo da renomada Escola Médica da Universidade de Harvard, publicado nesta semana, concluiu que as crianças poderiam até ser mais contagiosas do que os adultos e indica que o potencial de transmissão da Covid-19 por elas foi subestimado nos primeiros meses da pandemia. E agora, em quem acreditar?

“Na minha opinião, esse estudo não tem poder de concluir que as crianças têm maior contagiosidade. O que o estudo apontou é que, naquela população específica de crianças – e foram menos de 20 no grupo de crianças infectadas com menos de 10 anos, ou seja, um número muito pequeno – , a carga viral detectada era maior do que num grupo de adultos, que estavam numa fase diferente da doença”, frisa. “Isso não nos permite concluir que as crianças sejam, de fato, mais contagiosas. Na prática, não é o que temos visto.”

Outra falha da pesquisa de Harvard, sublinha o infectologista pediátrico, é que não estabelece até que ponto as crianças assintomáticas para a Covid-19 – a maioria – também seriam igualmente contagiosas. “Há ainda muitas incertezas e esse é um dos temas mais controversos hoje. Entretanto, há algumas convicções, e uma delas é que, quando infectadas, as crianças desenvolvem não só formas leves, mas assintomáticas da doença, que sequer são detectadas pelas famílias”, destaca.

Quando o isolamento é pior que a pandemia

Se, por um lado, o perigo de desenvolver a doença é baixo entre as crianças e, ainda menor, de sofrer formas graves da Covid-19, Sáfadi chama a atenção para outro tipo de ameaça que a pandemia gera para o público infantil, o de que o afastamento prolongado das escolas provoque “mais danos” às crianças do que a própria pandemia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) têm martelado nesse ponto.

"Tenho 30 anos de trabalho como pediatra e tenho a convicção de que a interrupção das aulas traz prejuízos cognitivos para as crianças que são muito importantes, particularmente nas mais jovens, que não têm nenhuma condição de manter uma qualidade de ensino pelas plataformas virtuais. É evidente que isso não é possível”, avalia o especialista. "Paralelamente, não podemos esquecer que, no caso do Brasil, a maioria das famílias não tem internet de qualidade nem computador. Quanto maior o tempo afastadas das escolas, maior a chance de que nunca mais elas retornem à vida escolar."

O infectologista lembra ainda que, em casa, as crianças enfrentam mais riscos de violência e abusos. A frequentação escolar, sublinha, é uma ferramenta importante para a identificação de casos que permaneciam reclusos ao ambiente domiciliar. “O que eu quero dizer é que não existe um caminho que tenha 100% de alegrias e certezas, mas temos de ter maturidade para tomar uma decisão que leve em conta todos esses aspectos, que seja pautada não apenas pelo emocional, mas também pelo racional. O problema precisa ser enxergado dentro de um contexto.”

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