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Falta de efetivo militar e ações descontínuas do governo deixam terra Yanomami à mercê do garimpo, aponta relatório

Relatório apresentado nesta sexta-feira (26) pela Hutukara Associação Yanomami mostra as novas estratégias do garimpo dentro da reserva indígena, com máquinas operando ao lado de comunidades sem bloqueio nem obstáculo. E deixa claro que a ação federal até aqui fez muito pouco para proteger as comunidades.

Representantes do IBAMA queimam um acampamento de garimpeiros durante uma operação contra o garimpo ilegal na terra indígena Yanomami, estado de Roraima, Brasil, 5 de dezembro de 2023.
Representantes do IBAMA queimam um acampamento de garimpeiros durante uma operação contra o garimpo ilegal na terra indígena Yanomami, estado de Roraima, Brasil, 5 de dezembro de 2023. REUTERS - UESLEI MARCELINO
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Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

“Perto da minha comunidade tem quatro acampamentos de garimpeiros. Eles são muitos, trabalham com muitas máquinas, já fizeram um buraco muito grande perto da nossa casa. Eles se espalham. Como é que nós vamos viver? Não tem nenhuma segurança na nossa comunidade. Estamos sozinhos, vivemos pensando que os garimpeiros vão vir nos atacar. Temos muito medo. Acho que todos nós vamos morrer”.

O relato de um morador de Korekorema, na terra indígena Yanomami, descreve o que é viver sob o medo de um ataque iminente vindo da ilegalidade que avança sem pudor. É também um grito estridente por ajuda:

“Eu vivo ensinando meus filhos a fugirem e se esconderem. Nós não dormimos em paz. Vocês têm que entregar minhas palavras para as autoridades. Nós estamos sem comunicação lá, se acontecer alguma coisa como vamos pedir ajuda? Eles já estão acabando com nossa água. Não tem mais peixes. Nós procuramos comida, mas não achamos! Os garimpeiros nos expulsam da nossa própria terra. Eles pensam que nós vamos levar a polícia para lá então eles nos ameaçam. Por isso nós fugimos, nós temos medo. Todas as minhas crianças estão doentes. Tem mais de um mês que ninguém da saúde vai lá fazer atendimento. Queremos que a equipe de saúde fique lá”, diz.

A reserva Yanomami, assim como outras Brasil afora, sempre foram alvo de investidas de invasores, que se expandiram ainda mais no governo de Jair Bolsonaro, por declarações de incentivo à exploração de minério nesses territórios e pela desestruturação dos órgãos de fiscalização ambiental durante seu mandato. O governo mudou, houve melhoras, mas nem de longe as ações do governo Lula foram capazes de fazer frente a essa invasão, especialmente após a negligência verificada no segundo semestre.

Impacto do garimpo 

O resultado de 2023 é de que o ritmo de crescimento do garimpo caiu, mas continua em trajetória ascendente, de acordo com dados da Hutukara Associação Yanomami, divulgados nesta sexta-feira.

“A área total impactada pelo garimpo cresceu cerca de 7% no ano de 2023, atingindo um total de 5.432 hectares. Este número representa uma desaceleração na taxa de crescimento da área degradada, em comparação com o avanço dos últimos anos, nos quais a taxa de incremento anual foram de 42% (2018-2019), 30% (2019-2020), 43% (2020-2021), 54% (2021-2022). Porém, este incremento revela também que a atividade ilegal continua operando com intensidade no território”, alerta o levantamento.

Das 37 regiões da Terra Indígena Yanomami, 21 têm registro de desmatamento associado ao garimpo: Alto Catrimani, Alto Mucajaí, Apiaú, Arathau (Parima), Auaris, Balawau, Demini, Ericó, Hakoma, Homoxi, Kayanau (Papiu), Maturacá, Missão Catrimani, Palimiu, Papiu (Maloca Papiu), Parafuri, Surucucus, Uraricoera, Waikás, Waputha, Xitei.

O relatório também mostra uma mudança de estratégia do garimpo de acordo com o empenho que o governo federal empreende na força tarefa em defesa dos indígenas. No primeiro semestre, diante de imagens chocantes de crianças indígenas a pele osso, adultos morrendo de fome e várias denúncias de abusos e doenças, o governo federal mobilizou um conjunto de operações que conseguiu reduzir de 70% a 80% dos invasores.

Porém, no segundo semestre, com o “relaxamento das ações de repressão, especialmente depois que as Forças Armadas assumiram maior protagonismo nas operações”, o garimpo voltou a reativar pontos antes desocupados e a intensificar em novas frentes. Não demorou para que uma crise de fome aguda fosse novamente estampada em imagens novamente chocantes, com a incrédula informação de que não havia aeronaves disponíveis para distribuir cestas básicas.

Maior território indígena do Brasil

A reserva Yanomami é o maior território indígena do Brasil, com 9,6 milhões de hectares na região Norte do país, na fronteira com a Venezuela. O garimpo que avançou do meio para o fim do de 2023 é mais organizado e atrelado a outras atividades ilegais como tráfico de drogas e armas, que usam a extração de ouro para enriquecimento e para lavar dinheiro de outras operações ilegais.

A extensão e a região de fronteira dificultam a fiscalização e facilitam a entrada de materiais usados no garimpo, como o mercúrio, que muitas vezes entra pelo lado venezuelano, também atingido pela exploração mineral. Com essas atividades vêm a derrubada da floresta, deixando, no conjunto, um rastro imenso de destruição que impede o crescimento de lavoura devido à contaminação da água, afugenta animais e impõe um cenário de fome extrema a algumas comunidades, já que o sistema de subsistência é todo atingido.

A fronteira também tem levado criminosos a burlar a fiscalização com a mudança de alguns centros de distribuição e logística para garimpos situados em território venezuelano, como Alto Orinoco, Shimada Ocho, Alto Caura e Santa Elena. Esses grupos, que têm resistido com armas e munição, têm se servido de várias estratégias para ampliar a ocupação ilegal, seja por meio de novas tecnologias de comunicação, avisando seus comparsas sobre operações no território, com a busca de canteiros em rios adjacentes e não apenas nos principais cursos e com a fragmentação das operações do garimpo.

O relatório ainda constata a presença de várias pistas instaladas para acesso aéreo pelos invasores e afirma que “o conjunto das denúncias das comunidades indicam que nas zonas de garimpo ativo dois processos distintos ocorreram em 2023: a resistência de alguns grupos, cuja atividade foi pouco ou nada impactada pelas operações das forças de segurança ao longo do ano; e o retorno de grupos para zonas já exploradas, após a diminuição da regularidade e da efetividade das operações no segundo semestre.”

 

Relatos dos indígenas

Segundo relatos de indígenas trazidos no relatório, somente numa das comunidades há uma média de 3 aeronaves pousando diariamente na Pista do Mucuim, onde o primeiro avião chega por volta das seis da manhã. Essa pista chegou a ser destruída pelo Exército no primeiro semestre, “mas como os garimpeiros da região não haviam sido retirados, eles voltaram ao local e recuperaram a pista”.

Na altura da região do Palimiu, lideranças locais afirmam que todos os dias, entre 4h30min e 6h00min, a comunidade é acordada pelo barulho dos motores de alta potência transitando pelo rio, mostrando que a barreira improvisada instalada nessa região da reserva não tem conseguido fazer frente aos invasores, já que o bloqueio não possui equipes sentinelas em caráter permanente e tampouco realiza abordagens de maneira compulsória.

Numa visita ao local, em novembro de 2023, representantes da Hutukura Associação Yanomami constaram a presença de 15 militares do Exército, nessa base da Funai que funciona como uma espécie de bloqueio e que já contou com pelo menos 50 militares no primeiro semestre do ano passado. Além deles, durante a visita, o local contava com quatro agentes da Força Nacional, dois agentes da Polícia Federal, quatro servidores da Funai, dois agentes do órgão e dois cozinheiros, no esforço de fazer a segurança das equipes de saúde, fiscalizar a área e encaminhar pessoas detidas.  Uma semana depois, os relatos dos indígenas é de que todos os militares haviam deixado o posto.

Indígenas também reclamam da ausência de operações armadas de intrusão por parte das forças oficiais, que visam expulsar os invasores, e que praticamente foram abandonadas. Sem presença militar, com grupos criminosos armados que operaram livremente com seus maquinários, o cenário de medo e destruição acaba afetando outra ajuda crucial para as comunidades no momento: o atendimento de saúde.

A junção nefasta de doenças trazidas pelos garimpeiros, como a malária, com a contaminação por metais pesados, fome aguda, angústia de uma ajuda que não chega, desestruturação de comunidades com bebidas e abusos, e a falta de um programa sanitário realmente eficaz que chegue nas comunidades resultou em pelo menos 308 mortes entre os Yanomami até novembro de 2023, no primeiro ano do governo Lula, contra um número muito parecido de óbitos, 343, registrado em 2022, último ano do governo Bolsonaro, conforme a RFI trouxe em reportagem este mês.

Das mortes do ano passado, das quais mais de 50% foram de crianças menores de cinco anos, 66 foram por doenças respiratórias, 63 por doenças infecciosas e parasitárias, 35 por doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas, 13 por afecções originadas no período perinatal, entre outras. Houve imprecisão na identificação de algumas causas, que no levantamento aparecerem como sinais e achados anormais de exames clínicos e de laboratório não classificados em outra parte (25) e causas externas (72).

“Eles querem nos matar, mas a gente ainda está firme, não queremos fugir. Talvez eles vão nos atacar, por isso meus jovens vivem com suas flechas na mão, eles têm medo. Isso tudo é verdade, você tem que levar essas minhas palavras porque são verdade. Nós queremos poder viver tranquilamente, estamos ainda esperando por isso. Será que eles vão nos responder? Vão ouvir nossas palavras?”, pede o morador de Korekorema.

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