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"Trauma que desmoraliza a polícia e o Estado": lideranças comentam o massacre em Jacarezinho

Entrevistado pela RFI, Rubem Cesar Fernandes, diretor executivo da organização Viva Rio, acredita que "ações como essa valorizam o bandido". Ele critica o extrapolamento do mandato pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, que "faz repressão como se fosse uma polícia ostensiva, ocupando o espaço da PM [polícia militar]". Para Eliana Souza Silva, fundadora e coordenadora da Redes da Maré, trata-se de "uma chacina que acontece fora de todos os limites legais". Ela acredita que "dificilmente haverá justiça para as pessoas mortas".

Pessoas participam de um protesto contra a violência policial  após uma operação policial que resultou em 25 mortes na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, Brasil, em 7 de maio de 2021.
Pessoas participam de um protesto contra a violência policial após uma operação policial que resultou em 25 mortes na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, Brasil, em 7 de maio de 2021. REUTERS - RICARDO MORAES
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A quinta-feira (6) começou no Rio de Janeiro com uma operação da Polícia Civil na favela do Jacarezinho, zona norte da capital fluminense, para combater o narcotráfico. Foram horas de tiros e desespero na comunidade até o fim da ação, que terminou com 25 pessoas mortas, entre elas um policial.

Rubem Cesar Fernandes, diretor executivo da organização Viva Rio, assinala que "a Polícia Civil não tem essa missão, a missão dela é investigar". "Ações de repressão e prevenção cabem à Polícia Militar. Isso já é um fato gravíssimo. A Polícia Civil extrapolou seu mandato, que é investigação, uma mandato judicial de produzir provas e investigações que levem à Justiça. Intervenções armadas devem ser feitas pela Polícia Militar", diz.

"Esse seria o modelo brasileiro, digamos assim. Mas isso foi ultrapassado pela guerra às drogas e a Polícia Civil formou um contingente violento, chamado Coreo, que faz repressão como se fosse uma polícia ostensiva, ocupando o espaço da PM", sublinha Fernandes.

"A segunda questão é que é bem provável que o Supremo Tribunal Federal tome alguma medida. Porque, evidentemente, essa foi uma ação que contrariou a normativa que o ministro [Edson] Fachin havia estabelecido relativo a ações em favelas durante a pandemia. A Polícia do Rio infligiu uma norma estabelecida pelo Supremo. Isso deve ter consequências judiciais", acredita o diretor da Viva Rio.

"Os mortos serão ‘repostos’, mais jovens estarão prontos para intervir, então é uma ação que não tem nenhuma consequência positiva na área de segurança. É só trauma", disse o diretor da Viva Rio, Rubem Fernandes, em entrevista à RFI sobre a chacina de Jacarezinho.
"Os mortos serão ‘repostos’, mais jovens estarão prontos para intervir, então é uma ação que não tem nenhuma consequência positiva na área de segurança. É só trauma", disse o diretor da Viva Rio, Rubem Fernandes, em entrevista à RFI sobre a chacina de Jacarezinho. © Reprodução Twitter

Para o diretor, "isso acabou virando um problema também político, porque o governador assumiu a responsabilidade pela ação, e ainda disse que era de ‘Inteligência’. Mas isso não é Inteligência. Todos conhecem o nome das lideranças do tráfico no Jacarezinho. É uma falta de inteligência global, sobretudo do ponto de vista estratégico. Não vai diminuir o tráfico, não vai diminuir o número de armas, ao contrário, vai provocar novas compras de armas, como uma reação à ação policial", avalia Fernandes.

 "Os mortos serão ‘repostos’, mais jovens estarão prontos para intervir, então é uma ação que não tem nenhuma consequência positiva na área de segurança. É só trauma", completa o diretor.

Para Eliana Souza Silva, coordenadora da Redes da Maré, "os moradores de favela precisam ser reconhecidos como cidadãos". "O Ministério Público, que deveria exercer um controle social sobre as ações policiais, não faz isso devidamente, não cumpre com a sua obrigação legal. Eu entendo que esta é uma chacina que acontece fora de todos os limites legais, e dificilmente haverá justiça para cada pessoa que foi morta ali. [Dificilmente] vai haver investigação ou esclarecimento dos crimes", destaca. 

“Há sim uma conivência, os policiais estavam respaldados, há uma respaldo que vem do governo do estado, e muito provavelmente, do governo federal”, afirma.

"Momentos depois da chacina, houve uma coletiva de imprensa da polícia onde ela encontra justificativas para dizer que essa foi uma ação legal, necessária, e que teve êxito. Isso é muito grave. Uma ação com 25 mortes não deu certo. O fato da cena do crime ser totalmente alterada pelos policiais – porque não existe nenhum controle sobre a atividade deles – é mais uma dessas arbitrariedades que combatemos", afirma a coordenadora do movimento social das favelas da Maré.

Respaldo dos governantes 

"A forma brutal como a Polícia Civil agiu no Jacarezinho certamente tem respaldo dos governantes, do governo estadual, e certamente não deve ser coincidência, o presidente da República, que tem a sua base eleitoral no Rio de Janeiro, se encontrou um dia antes da operação com o governador. Uma ação no Jacarezinho, uma favela que fica do lado da Cidade da Polícia", analisa Eliana Souza Silva, mencionando a sede central das forças policiais na cidade.

"A forma como essa dita operação policial aconteceu, vitimando um dos policiais, e a partir disso, toda uma movimentação que caminha para o massacre, certamente as coisas estão relacionadas. Existe minimamente um concordância com essa forma de abordagem. Isso aconteceu muito cedo, e, mesmo com os moradores denunciando, a operação durou nove horas. Tem, sim, uma conivência com ess abordagem e um acordo para sustentar uma ação como essa", acredita.

Rubem Cesar Fernandes hesita em concordar com a tese de "conivência" das autoridades. "Não dá para saber, especular, não saberia dizer. Sei que este tipo de operação está ‘na veia’ das práticas de segurança no Rio de Janeiro. Isso já se tornou costumeiro. Foi um extremo, mas, todo dia, você tem confrontos violentos em algum lugar da Grande Rio", diz o diretor da Viva Rio.

"São confrontos sem justificativa estratégica, não levam a lugar nenhum. São confrontos anárquicos, que se repetem desde os anos 1980. É uma coisa terrível, já tivemos eventos quase tão letais quanto este, são eventos constantes", completa.

"Se existe essa suspeita, isso precisa ser averiguado. Mas isso não é um recado fora do lugar, isso é uma prática da política de segurança no Rio de Janeiro há alguns anos. O governador Witzel disse no início da campanha disse que era para ‘atirar para matar’. Ele sobrevoava as favelas de helicóptero", lembra.

"Guerra às drogas"

Para o diretor, a questão é "mais profunda". "Pode ser que haja uma maluquice do Bolsonaro, porque ele é louco, um sociopata. Mas isso na minha opinião é um detalhe, não é o principal. O principal é que estamos imersos numa guerra às drogas, uma doutrina que vem lá de trás, da época da era Nixon, nos Estados Unidos, e que foi absorvida pela América Latina e colocada em prática no Brasil a partir dos anos 1990, ou no final dos anos 1980, e que vem se repetindo", contextualiza.

"Estamos num círculo infernal de violência", sintetiza Fonseca. "Ações como essa valorizam o bandido. O resultado é que os bandidos são vistos na comunidade como vítimas. O Estado vai lá e mata de uma tal maneira que os bandidos que são criminosos, que exercem um poder tirânico sobre a comunidade, os bandidos viram mártires. A polícia se desmoraliza, o Estado se desmoraliza, e a população vive o terror", conclui.

"O que aconteceu ontem é um recado no sentido mais amplo que essa palavra possa ter", diz a coordenadora da Redes da Maré. "A polícia nunca deixou de agir de uma maneira equivocada, bélica, mas ontem eles se superaram. Eu penso que é um dado preocupante, a sociedade civil fica apreensiva. Nós que trabalhamos no enfrentamento à violência nas comunidades da Maré, pensamos: qual será a próxima favela?", finaliza.

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