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Direito ao esquecimento: entenda as diferenças e semelhanças entre o Brasil e a Europa

O Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil começou a julgar, na última semana, o direito ao esquecimento. O debate sobre a questão envolve também o respeito à liberdade de expressão e à intimidade. A Europa passou por um processo similar nas últimas décadas. Embora os países europeus já possuam uma legislação sobre a questão, as denúncias recentes de violências e abusos sexuais trazem à tona questionamentos sobre a prescrição destes crimes e a necessidade de os cidadãos continuarem sendo associados a esses fatos.

O debate sobre o direito ao esquecimento envolve também o respeito à liberdade de  imprensa e o direito à intimidade.
O debate sobre o direito ao esquecimento envolve também o respeito à liberdade de imprensa e o direito à intimidade. © Wikipedia
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Em 1958, a jovem Aída Curi, na época com 18 anos, foi vítima de um crime brutal no Rio de Janeiro. Com grande repercussão na mídia na época, sua família revive a situação cada vez que o episódio é lembrado.

Em 2004, a Rede Globo abordou a morte de Aída Curi em um programa de TV, o que levou a família da vítima a pedir indenização à emissora por danos morais e exigir que história da jovem fosse esquecida pelos meios de comunicação. Os pedidos foram negados pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e cabe agora ao STF julgar o caso.

A problemática também gira em torno da inexistência de uma legislação no Brasil sobre o direito ao esquecimento. No entanto, a advogada Fernanda Garcia Ghisi (OAB/SC 35.180), do escritório Balsini Correa Advogados Associados, explica que os tribunais brasileiros já tiveram que se posicionar em processos que abordaram o tema, tendo como pessoas interessadas tanto a vítima de algum crime como réus condenados.

“O embasamento jurídico utilizado pelas partes que buscam esse direito é encontrado em normas correlacionadas como direito à honra, vida privada, integridade, intimidade tanto da pessoa quanto de sua família, esculpidos no artigo 5º, X da Constituição da República2, explica. "Também a Lei nº 12.965/2014, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, fundamenta a matéria através do artigo 3°. Ele elenca o direito à proteção, à privacidade, de dados pessoais, inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, acrescenta.

Na última quinta-feira (4), no segundo dia de julgamento, o ministro José Antonio Dias Toffoli se manifestou contra a questão por considerar que ela desrespeita a liberdade de expressão. Segundo ele, não cabe ao Judiciário criar um suposto direito ao esquecimento no Brasil.

"É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento. Assim entendido como poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação sociais analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício de liberdade de expressão devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente naqueles relativos à proteção da honra, imagem, privacidade e da personalidade em geral e também as expressas e específicas previsões legais penal e civil”, declarou.

Para a advogada Fernanda Garcia Ghisi a análise da questão é complexa, especialmente porque o direito em debate não está expressamente previsto em lei. “O direito ao esquecimento visa resguardar os direitos da personalidade decorrentes da dignidade da pessoa humana, quando prejudicados pela atuação demasiada do direito de liberdade de expressão imprensa devem ser sopesados", declara. "Entendo que a censura seria a forma mais radical de sanar este binômio. A atuação da mídia é função indispensável para uma sociedade democrática e livre. Com relação ao ponto de equilíbrio entendo cabível diante de uma análise individualizada do caso em concreto buscando sempre aferir possíveis excessos”, completa.

Informática permeou direito ao esquecimento na Europa

Na França, o debate sobre o direito ao esquecimento começou desde a redação da Lei Informática e Liberdades, em 1978, que já previa a possibilidade de apagar dados pessoais. As discussões voltaram à tona nos anos 1990, quando o Parlamento Europeu proibiu a divulgação de conteúdos “que revelam a origem racial ou étnica, opiniões políticas, convicções religiosas ou filosóficas, filiação sindical, bem como dados relativos à saúde e à vida sexual” sem o consentimento da pessoa em questão. O documento, adotado em 1995, também prevê que dados de caráter pessoal “inexatos ou incompletos” sejam “apagados ou retificados”.

Com a democratização da internet, nos anos 2000, a questão ganhou um apelo maior na sociedade. Na França, por exemplo, o governo aprovou em 2010 a Carta do Direito ao Esquecimento Digital, na época rejeitadas na época tanto pelo Google quanto pelo Facebook.

Quatro anos depois, a Corte de Justiça da União Europeia determinou que “a empresa relacionada a um motor de busca é obrigada a apagar da lista de resultados, disponibilizada após uma pesquisa feita a partir do nome de uma pessoa, links direcionados a páginas web, publicadas por terceiros e contendo informações relativas a essa pessoa”.

A decisão foi motivada pelo caso do espanhol Mario Costeja González que registrou, em 2010, uma queixa junto à Agência de Proteção dos Dados da Espanha devido a resultados de buscas no motor de pesquisa da Google relacionado a seu nome.

González requisitava que fossem retirados da internet links que direcionavam a uma matéria publicada em 1998 pelo jornal La Vanguardia sobre um leilão judicial de seu apartamento para o pagamento de dívidas. Mais de dez anos após a quitação do montante, seu nome continuava associado às buscas, gerando constrangimento para o espanhol, que prestava consultoria a empresas.

Embora a Agência de Proteção dos Dados da Espanha tenha rejeitado a queixa contra o jornal, o órgão pediu à Google para apagar as informações disponibilizadas pelo motor de pesquisa. Com a recusa da gigante americana, o caso foi enviado pela Supremo Tribunal espanhol à Corte de Justiça da União Europeia. Esta determinou que, em alguns casos, operadores de mecanismos de busca na internet podem ser obrigados a apagar links que enviam a páginas com informações relativas a uma pessoa sem o acordo dela.

No caso específico de González, o tribunal julgou que os dados disponibilizados pela Google se tornaram desatualizados e não-pertinentes com o passar dos anos. Desta forma, a gigante americana foi condenada a apagar os links que levassem à notícia do La Vanguardia, embora a matéria continue até hoje on-line.

“O que a justiça determina hoje é o direito à eliminação de dados. Isso quer dizer que, além de um certo período, se você não tiver uma justificativa para conservar esses dados, você tem a obrigação de apagá-los”, explica Romain Perray, advogado associado do escritório McDermott Will and Emery e professor de Proteção de Dados nas universidades Sorbonne, Assas e Paris-Descartes.

Perray salienta que não existe um direito ao esquecimento geral e a legislação atual diz respeito apenas à dados caracterizados como pessoais. “Jamais será possível apagar um fato histórico”, lembra.

A partir da decisão da Corte de Justiça da União Europeia, o Google também passou a propor um formulário on-line a todos os cidadãos europeus, para que possam fazer o pedido de retirada de links que divulguem informações pessoais sem autorização. Foi através deste recurso, que a princesa alemã Theodora Sayn-Wittgenstein conseguiu apagar 197 das 249 referências no Google sobre declarações polêmicas que fez em 2014. Sob o efeito de bebidas alcoólicas, ela fez afirmações homofóbicas e racistas que chocaram a opinião pública e incendiaram sites de celebridades na época.

Liberdade de imprensa em questão

Até quando o direito ao esquecimento pode interferir na liberdade de imprensa? Perray lembra que mesmo em caso de prescrições de crimes, a imprensa francesa tem o direito de continuar abordando o assunto. “Se, por exemplo, um dia o site de um jornal – como Le Monde, Le Figaro, Les Echos – quiser resgatar uma de suas antigas matérias sobre casos de corrupção, que ocorreram há 20 ou 30 anos, isso é completamente possível”, explica.

Por isso o advogado contesta o termo “direito ao esquecimento”. Segundo ele, a expressão dá a entender que é possível apagar o passado.

“O direito à desindexação ou à retirada de uma referência é uma modalidade que diz respeito somente à internet. Ou seja, o link a uma antiga matéria é retirado – porque ele não tem mais utilidade e com o tempo ele perdeu o significado. O objetivo é reduzir a importância de algo extremamente intrusivo e que possa prejudicar a vida privada de indivíduos quando não há mais pertinência”, ressalta.

Condições do direito ao esquecimento na França

Em 6 de dezembro de 2019, o Conselho de Estado estabeleceu as condições para que o direito do esquecimento na internet seja respeitado. Este direito diz respeito a três categorias de informações pessoais: as consideradas “sensíveis” (dados intrusivos sobre saúde, vida sexual, opiniões políticas, convicções religiosas, etc), relativos a procedimentos judiciais ou condenações penais e que tenham relação com a vida privada de alguém sem ser necessariamente sensível. Para esse último caso especificamente um “interesse preponderante do público” para o acesso à informação pode explicar uma recusa da justiça.

Perray destaca também que, desde a redação da Lei Informática e Liberdade na França, em 1978, e quando a diretiva da UE foi adotada, em 1995, foi considerada uma série de exceções sobre o direito de esquecimento que pudesse prejudicar a liberdade imprensa, além de criações literárias e artísticas.

O advogado ressalta que, mesmo para abordagem pela imprensa de crimes que já prescreveram - no caso de um pedido de retirada de uma referência - será necessário que o requerente prove que esse não é um tema de atualidade e que não serve para a informação pública. “Na maioria dos casos, a imprensa terá ganho de causa, especialmente se a pessoa em questão é uma personalidade pública”, diz Perray.

O especialista também explica que um juiz também pode se posicionar contra uma desindexação de dados pessoais quando esses dados têm relação com um debate público importante sobre a questão, a exemplo da onda de denúncias de pedofilia e incesto atualmente na França. “Ou seja, mesmo se for muito prejudicial para esse indivíduo, pode acontecer de um magistrado considerar que não podemos pagar uma referência porque no momento a discussão deste determinado assunto é essencial para a sociedade”, completa.

Além disso, tanto na França quanto em outros países europeus, a retirada das informações dos motores de pesquisa do Google dizem respeito somente às buscas feitas dentro dos países da União Europeia. A gigante americana utiliza um método de bloqueio baseado em um mecanismo que identifica o domínio (google.fr, por exemplo) e o endereço IP do usuário – um método 100% eficaz, segundo o Google. Ou seja, se a busca pela informação contestada é feita dentro da UE, o link não será encontrado. Mas ele continuará disponível no resto do mundo.

Em 2018, a Comissão Nacional de Informática e Liberdades da França chegou a exigir da gigante americana que os resultados indesejados fossem apagados de todas as extensões do motor de pesquisa. O caso, depois de aterrissar na Corte de Justiça Europeia, terminou com vitória da Google.

Um milhão de pedidos de eliminação de referências

Segundo o relatório de transparência da gigante americana, divulgado no ano passado, cerca de um milhão de pedidos de supressão de referências, relativos a 3,7 milhões de páginas na internet, foram feitos na UE desde a decisão da alta corte europeia. Os franceses são os mais adeptos desta prática, com mais de 216 mil pedidos para cerca de 750 mil links.

Na França, 50,8% dos pedidos para a retirada de resultados em motores de pesquisa são aceitos, contra 46,5% em todos os países da União Europeia.

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