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Literatura

Em debate: por que o brasileiro não lê romances nacionais?

Na lista dos 20 livros de ficção mais vendidos no Brasil em 2017, constam apenas quatro títulos nacionais. Dois deles são livros sobre Jesus Cristo. Os outros 16 são estrangeiros, que vão do horror de Stephen King aos mistérios de Dan Brown. A questão é: por que o leitor brasileiro não se interessa pela literatura nacional? Ou, quem sabe, por que as editoras não se interessam por autores brasileiros?   

Dos 20 romances mais vendidos em 2017, só quatro eram brasileiros, sendo dois sobre Jesus Cristo.
Dos 20 romances mais vendidos em 2017, só quatro eram brasileiros, sendo dois sobre Jesus Cristo. Abhi Sharma/abee5 CC BY 2.0
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O Brasil tem 207 milhões de habitantes e, pelo menos, 104 milhões de leitores, segundo dados do Instituto Pró-Livro, divulgados em 2016, em parceria com o Ibope Inteligência. A definição de leitor usada pela pesquisa é bastante abrangente: “é aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro nos últimos 3 meses”, diz o Pró-Livro na apresentação do estudo “Retratos da Leitura no Brasil”.

No entanto, quando questionados sobre quais livros eles leem, 42% dos leitores dizem ler a Bíblia, além de outros livros, enquanto apenas 22% declaram o hábito de ler romances.

Ainda assim, 22% de 104 milhões de leitores seriam 23 milhões de consumidores em potencial para o mercado de romances nacionais. Mas os números do mercado não confirmam esse interesse. A grande maioria de obras de ficção vendidas no Brasil é composta por livros estrangeiros.

A culpa é das estrelas?

Não. Segundo Carlo Carrenho, proprietário do website Publishnews, o problema não é exclusivo do Brasil. “Precisamos levar em conta o domínio do mercado mundial por autores ingleses e americanos. A França, por exemplo, pode ter grandes escritores, mas Harry Potter talvez tenha vendido mais do que todos eles juntos”, comenta Carrenho.

No caso do Brasil, há um agravante. Com um mercado editorial reduzido, se comparado ao tamanho da população, as editoras preferem não arriscar na promoção de novos autores nacionais.

“Lançar um novo autor, que não tenha uma plataforma anterior (como uma celebridade, por exemplo) é sempre muito arriscado para as editoras. É um risco absurdo, na verdade. Por isso, elas preferem investir nos autores estrangeiros, consagrados, que já vendem milhões de exemplares no exterior”, explica Carrenho.

Luiz Álvaro de Menezes, gerente de Relações Internacionais da Câmara Brasileira do Livro (CBL), concorda: “Deve-se compreender que o processo de publicação de um livro de autor nacional e o de um livro de autor estrangeiro é diferente. Na maioria das vezes, o livro do autor brasileiro é lançado aqui antes, sendo o nosso mercado o laboratório para esse título. Já os títulos estrangeiros foram testados em outros mercados e traduzidos para o Brasil apenas quando tiveram um bom resultado. Empresários não costumam adquirir direitos de tradução de livros estrangeiros que não apresentaram bom desempenho fora do Brasil”.

Por que não no Brasil?

A agente literária Luciana Villas-Boas, da Villas-Boas & Moss, não discorda do risco corrido pelas editoras quando investem em novos autores. Por outro lado, lembra que “o brasileiro não é um leitor-aberração que não tem interesse de se ver retratado literariamente. Sem pôr em dúvida a hegemonia global da ficção de origem anglo-saxônica, é bom lembrar que em todos os lugares do mundo, inclusive países latino-americanos como Argentina, México e Chile, de 20% a 40% das posições entre os 10 primeiros das listas de best-sellers ficam para as literaturas nacionais. Isso poderia acontecer no Brasil, e a prova é o desempenho de autores como Francisco Azevedo e Luize Valente, sucessos silenciosos, que não chegam às listas e nem mesmo aos espaços da mídia literária, mas que vendem consistentemente números muito expressivos”.

“Autores brasileiros não se interessam pela fórmula do best-seller”

Para o escritor Bernardo Carvalho, ganhador de três prêmios Jabuti, a maior distinção da literatura nacional, a comparação não deve ser feita entre livros brasileiros e estrangeiros, mas sim entre gêneros literários.

“A ficção estrangeira presente na lista dos mais vendidos no Brasil é muito vulgarizada. Ela atende a essa fórmula dos ‘mais vendidos’, que talvez o autor brasileiro não saiba fazer. Talvez eu me engane, mas, fora o Paulo Coelho, é raro encontrarmos um brasileiro que produza esse tipo de literatura. Então, a questão tem menos a ver com o fato de ser brasileiro ou estrangeiro do que com o fato de se fazer um certo tipo de literatura”.

“Falta educação”

O relatório do Banco Mundial para a Educação, publicado neste mês de fevereiro, aponta que tem havido avanços na educação brasileira, mas, no quesito “Leitura”, mantendo-se o atual ritmo de evolução, o país ainda levará 260 anos para alcançar o nível dos países desenvolvidos.

Essa, segundo a escritora Patrícia Melo, autora de dez romances e ganhadora do prêmio Jabuti em 2001, é uma das razões para a escassez de cidadãos interessados na literatura nacional. Isto é, um país que não forma leitores.

“Não há uma política de educação que seja comprometida, longeva. O que há são projetos pontuais, aqui ou ali, sujeitos às mudanças políticas. Hoje a educação brasileira está falida. Os professores são personagens trágicos da nossa sociedade. São profissionais pouco valorizados. O próprio sistema de educação não exige nenhum engajamento dos alunos. O sistema forma cidadãos que são analfabetos funcionais, que não conseguem entender uma notícia lida no jornal. Imagina a literatura!”, queixa-se Patrícia.

“Certamente, há problemas estruturais decorrentes do atraso brasileiro em todos os indicadores sociais, principalmente escolares, mas são dados que não explicam a totalidade do fenômeno. Pois há leitores para os autores estrangeiros”, comenta Luciana Villas-Boas. “O que não há em número significativo são autores brasileiros equivalentes a um Michel Houellebecq ou Nick Hornby. Boa literatura que possa ser lida em níveis diferenciados de profundidade”.

De olho nas vendas

Para Luciana, os editores brasileiros, acostumados com as compras maciças do governo, se esqueceram de como a ficção brasileira pode e deve ser trabalhada para que se alcance o leitor que frequenta as livrarias.

“Com olho nas vendas para o governo, que de meados de 1990 a 2014 sustentaram a literatura nacional, com milionárias aquisições de livros em níveis federal e estaduais, o editor passou a publicar para críticos e professores de Literatura em departamentos de Letras, para o jornalista da área, para os júris de premiações, para os próprios escritores e principalmente para os técnicos do ministério e das secretarias de Educação, figuras que davam e dão o tom do debate literário, prestigiando uma pauta restrita de temas e uma linguagem experimental que raramente agradam ao leitor culto não-especializado”, explica Luciana.

“É sempre mais fácil culpar o mercado”

“Com o golpe de morte nas aquisições do governo desfechado por Dilma Rousseff no malfadado e inesquecível primeiro semestre de 2015, os editores teriam que se reciclar e se voltar para um vasto público de classe média - engenheiros, médicos, técnicos de marketing, economistas, bancários, donas de casa e tantas outras categorias profissionais que abrigam potenciais leitores de ficção - simplesmente sem acesso a narrativas de qualidade e boas de ler, que reflitam na literatura os dramas e conflitos subjetivos e históricos com a marca da experiência brasileira. Esses leitores não compram esses livros simplesmente porque não os há, são pouquíssimos os títulos à disposição e, quando existem, estão escondidos. Os pobres leitores ainda têm que pagar levando a pecha de não gostar de ficção brasileira. É sempre mais fácil culpar o mercado”, conclui Luciana.

Luiz Álvaro de Menezes, da CBL, não concorda: “O Brasil está repleto de autores de qualidade, seja de literatura mais sofisticada, com maior apelo popular, gêneros infantis e outros. Somos reconhecidos aqui e no exterior por toda a nossa criatividade, qualidade literária e de ilustrações. Quanto às compras governamentais e a hora certa para se investir nos autores de maior alcance, afirmo que isso não existe. Sempre é hora de investir nos autores nacionais, independente das compras ou não do governo”, encerrou.

NdR: A lista de mais vendidos usada nesta reportagem é atualizada semanalmente pelo website Publishnews.

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