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Brasil/Retrospectiva

O ano em que o gigante Brasil encolheu na imprensa francesa

No início de 2013, a imprensa francesa ainda estava em lua-de-mel com o Brasil. Claro que os resultados da economia no ano anterior tinham reduzido um pouco a empolgação, mas poucas eram as matérias que não faziam apologia do Gigante do Sul. Uma manchete elogiava a atuação de Joaquim Barbosa no julgamento do escândalo de corrupção que se convencionou chamar "Mensalão"; outra saudava a popularidade de Dilma Rousseff. Uma outra ainda lembrava que a riqueza que o Brasil ostentava a um mundo devastado pela crise era apenas a ponta de um iceberg chamado pré-sal. Passou-se um ano, mais um PIB abaixo do esperado, novos escândalos de corrupção, uma ebulição social sem precedentes, atrasos e acidentes em obras da Copa, denúncias de espionagem americana, muita violência policial, parcos resultados de reforma agrária... E a lua-de-mel esfriou.

Economia e manifestações mudaram olhar da imprensa francesa sobre Brasil
Economia e manifestações mudaram olhar da imprensa francesa sobre Brasil REUTERS/Ricardo Moraes
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De novo líder mundial, o país voltou a ser tratado como "país do futuro"; um futuro que pode não se estender muito além das Olimpíadas de 2016. Conforme as economias tradicionais começam a recuperar - ainda que timidamente - seu fôlego, desconfianças recaem sobre os BRICS (grupo de emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), cuja soberania anunciada era quase unânime na alvorada de 2013. Claro que o interesse pelo Brasil não se esfacela em um ou dois anos, mas, aos olhos dos principais jornais franceses, ele parece não ultrapassar o nível do fascínio. Uma curiosidade endêmica pelo que é "diferente". Mas, no que tange nosso novo papel como potência política e econômica, não há como negar uma certa desilusão.

Não que o ano anterior tenha sido um mar de rosas: no fim de 2012, os jornais franceses já sinalizavam resultados de crescimento do PIB abaixo do esperado (0,9%, o menor em três anos), atrasos nas grandes obras de infra-estrutura e uma epidemia de corrupção que conhecemos de outros carnavais.

Favela Chic
O vespertino Le Monde terminou 2012 com duas grandes matérias sobre a popularidade de Dilma Rousseff e sua nova autonomia com relação a Luiz Inácio Lula da Silva - que, aliás, fez questão logo no início de 2013 de afastar rumores de uma possível candidatura presidencial. E começou 2013 se lançando nas favelas pacificadas do Rio de Janeiro, sem ignorar, no entanto, os atrasos nas obras de infra-estrutura da Copa do Mundo.

O correspondente do jornal na cidade, Nicolas Bourcier, subiu o Morro Dona Marta no Rio para constatar que, após a ocupação policial, o mercado imobiliário floresceu na favela. "Ao pé da favela, próxima do centro, instalaram-se uma loja das Casas Bahia e caixas 24 horas", impressionava-se o jornalista, munido do dado de que, 72 horas após a ocupação policial, o preço do metro quadrado subiu 50%.

Ele também esteve no Complexo da Maré, que viu já livre do crime organizado, ainda que o tráfico continuasse "em pequenas mãos" de garotos que ocupam pontos estratégicos da favela. Apesar de constatar a ausência de bandidos com suas AK-47 em riste, elogiar o mapeamento das ruas e a distribuição de números e códigos postais a 85% das casas, Bourcier reconheceu que a ocupação policial das favelas do Rio de Janeiro era "invasiva", para dizer o mínimo.

Alforria
Mas o primeiro assunto a chamar a atenção de todos os jornais franceses foi o que Le Monde chamou de "segunda abolição da escravidão": a regularização do trabalho de empregadas domésticas. A correspondente do diário conservador Le Figaro, Lamia Oualalou, começa sua matéria por uma descrição da capa da revista Veja daquela semana: "um homem, de gravata azul da cor do céu afrouxada e coberta por um avental, lava a louça, com o olhar desiludido. O título não tem apelo: 'você amanhã'". A revista, que fala à classe média e só à classe média, colocou as preocupações de seu público na ordem do dia.

Mas a repórter do Figaro foi conversar com a presidente do sindicato das empregadas domésticas, com a gerente de uma empresa de recrutamento dessas profissionais e, claro, com elas próprias. Constatou que o Congresso havia chancelado um câmbio social que começou no primeiro governo Lula: a ascensão das camadas mais pobres da sociedade, por meio dos programas federais de distribuição de renda. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que ela cita na matéria mostram que a inserção social potencializou o poder de negociação das domésticas: nos últimos dez anos, elas tiveram aumento salarial médio de 57%.

Le Monde lembra que, com um contingente de 6,1 milhões de pessoas, o Brasil é campeão mundial de trabalho doméstico, de acordo com a Organização Mundial do Trabalho. Essa, que é "a terceira principal ocupação feminina" do país, emprega nada menos que 15% das brasileiras ativas. "Os postos são ocupados principalmente por mulheres negras e, em mais de 70% dos casos, de maneira informal". Citando Creuza Maria Oliveira, presidente da Federação Nacional dos Trabalhadores Domésticos, o texto lembra que "a origem do trabalho doméstico no Brasil é a escravidão". Portanto, a emenda constitucional "não trata somente de igualdade de direitos, mas de inclusão social e reparação histórica".

Economia ao largo da crise
Os avanços sociais não foram os únicos a empolgar a imprensa francesa. Uma matéria publicada em 22 de abril por Le Figaro, mostrava como os investidores estrangeiros viam o mercado brasileiro: se o negócio fosse nas áreas de alta tecnologia ou TI, 80% dos 227 chefes de empresas entrevistados preferiam o Brasil a qualquer outra economia. Sem saber qual era o setor, 56% investiriam primeiro na China, 52% no Brasil. Nosso país também era destino predileto para serviços financeiros.

A correspondente do diário progressista Libération Aglaé de Chalus partiu para o "Silicon Valley" brasileiro, discretamente situado no bairro de São Pedro, em Belo Horizonte. "Autobatizada São Pedro Valley", conta a repórter, "a comunidade conta com cerca de 50 start-ups, três encubadoras, uma 'aceleradora' de empresas e cerca de dez espaços de 'coworking'". Este coletivo empresarial também tem três fundos de investimentos. Não podia ser diferente, dado o potencial da internet no Brasil: são 88 milhões de conectados em um país onde a web não atinge mais do que 45,6% da população, como observa a repórter.

Matérias deste tipo, em que repórteres desvendam sintomas do dinamismo econômico brasileiro, apareceram aos montes. Uma pequena empresa de Porto Alegre que produz impressoras 3D, uma família nordestina que deixou o subemprego para abrir seu próprio negócio... Exemplos que, de fato, não se via no Brasil de 20 anos atrás. Mas, no plano macro-econômico, os jornais continham o otimismo.

Quando saíram os fracos resultados do PIB no primeiro trimestre (0,6% de alta entre janeiro e março, retração da atividade industrial e a consequente revisão da projeção de crescimento para o ano), Le Monde escreveu: "Ainda mais preocupante é o súbito aumento da inflação, que compromete a estratégia de recuperação do governo". Um dilema para as autoridades monetárias, que se veem com "crescimento decepcionante e tensões inflacionistas em um país que carrega o estigma da hiperinflação". Enquanto esperam uma solução, os brasileiros veem os preços subirem. "Retrai-se o consumo que foi, com o boom das matérias primas, o principal motor de crescimento destes últimos anos, impulsionado pela ascensão das classes médias e uma redução histórica da pobreza".

Brasil na OMC
Mas, na mesma época, o Brasil ganhou um voto de confiança no plano internacional, com a escolha de Roberto Azevêdo para dirigir a Organização Mundial do Comércio (OMC). "É um sucesso pessoal para este diplomata de carreira", escreveu Nicolas Bourcier, do Le Monde. "Mas é também uma vitória para o Brasil na cena internacional". Na opinião do jornalista, o feito de convencer a maioria dos 159 Estados membros da Organização mostra a força do Itamaraty ao colocar, pela primeira vez, o Brasil à frente de uma instituição do sistema Bretton Woods, "um velho sonho da diplomacia brasileira".

Em entrevista ao jornal, o então chanceler Antonio Patriota disse que a escolha revela "uma ordem mundial em transformação". O Libération segue nessa mesma linha, ao dizer que ainda que o concorrente mexicano Herminio Blanco tivesse o apoio dos países ricos, os BRICs e os países do hemisfério sul falaram mais alto e escolheram o brasileiro. Le Figaro classificou a eleição de Roberto Azevêdo de uma "dupla revolução", que confirma o crescimento da América Latina no cenário internacional e consolida o novo peso dos países emergentes no mundo.

Mas o diário conservador não deixou de comensurar o desafio que o brasileiro tinha pela frente: "A OMC se engajou em 2001 na rodada de Doha por uma maior liberalização do comércio internacional. Ainda que no início, a ideia fosse fortalecer as exportações dos mais pobres, a rodada rapidamente se converteu num embate norte-sul. Hoje, existe um impasse". Para resolver o problema, o Figaro lembrou que as exportações dos emergentes crescem em ritmo mais acelerado do que as dos desenvolvidos, o que é certamente um trunfo. Mas que toda a diplomacia do mundo é pouca para que as negociações não descambem para novos embates com a China, a Europa e os Estados Unidos. Não à toa, assim que Azevêdo foi eleito, a presidenta Dilma Rousseff se apressou em dizer que a vitória não foi de um país ou de um grupo de países, mas da própria América Latina.

Ebulição social
Quando parecia que o Brasil caminharia para um ano de fraco crescimento, desenvolvimento aquém do esperado na infra-estrutura e uma única vitória diplomática (depois de anos da presença forte de Celso Amorim à frente do Itamaraty), o país virou de ponta-cabeça. De repente, "passe livre" era uma expressão comum na boca dos franceses. Todo mundo parou para olhar o que alguém que certamente não acompanha os movimentos sociais brasileiros dos últimos 500 anos chamou de "despertar do gigante". Le Figaro fechou um pouco seu espectro de análise e conseguiu ser mais preciso: "o despertar da classe média".

"O Brasil se tornou a sexta economia do mundo, os indicadores macroeconômicos continuam no azul, o desemprego é um dos menores do mundo (5,5%) e o crescimento nos últimos cinco anos se aproximou dos 5%", declarou ao jornal o presidente do conselho gestor do Instituto de Altos Estudos da América Latina (IHEAL) de Paris, Stéphane Witkowski. "A desaceleração recente da economia evitou um superaquecimento da economia. No fundo, o que acontece hoje é um pouco o outro lado da moeda, o custo do crescimento. O desenvolvimento econômico do país permitiu que trinta milhões de brasileiros saíssem da miséria para integrar a classe média e essa classe média tomou ciência de seu peso", analisou.

Mas toda a explicação é pouca para um levante social que envolveu muito mais do que a classe média recém-saída da miséria. Uma "ebulição social", como chamaram em uníssono, o Figaro da direita e o Libération da esquerda. De repente, o país pacífico e economicamente sadio num mundo enfermo estava na rua. E, para quem vive do outro lado do oceano, era virtualmente impossível compreender o que estava acontecendo. Era um movimento contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, o governador mandou a polícia reprimir, o prefeito concordou, os jornais pediram cadeia e cassetete, o comentarista da televisão chamou os manifestantes de de filhinhos de papai desocupados.

De repente, "era bem mais do que 20 centavos", os jornais saíram em defesa dos jovens que queriam mudar o Brasil, atores da TV Globo se solidarizaram com uma repórter baleada, o comentarista da televisão foi pedir desculpas e conclamar manifestações contra a corrupção em Brasília, a PEC 37 e a "impunidade dos mensaleiros". E pouco depois, havia nas ruas um misto de pseudo-anarquistas, anarquistas de verdade, manifestantes das mais variadas causas, fortões em clima de micareta com lata de cerveja em riste, um lúmpen brandando slogans de contornos fascistóides ("meu partido é o Brasil") e até filho de empresário de ônibus depredando prédio público.

Quando silêncio ensurdecedor da presidenta Dilma Rousseff ainda pairava sobre as manifestações, depois de uma invasão ao palácio do Itamaraty, a correspondente do Libération Chantal Rayes descreveu assim o que viu em São Paulo: "Os militantes do PT foram recebidos com desconfiança e tiveram de fugir das agressões de uma massa avessa a qualquer formação política. 'Ei, PT, vai tomar no ...', urravam manifestantes, enquanto queimavam furiosamente a bandeira vermelha do partido de Lula. 'Vai pra Cuba, vai pra Venezuela', gritavam outros. 'Fascistas!', respondiam os integrantes do Movimento Passe Livre (MPL). Na origem da onda que inflama o país, o MPL, grupo "anticapitalista" que luta pela gratuidade do transporte público, chegou a abandonar a manifestação.

Quando havia marchas programadas para cerca de 60 cidades, o MPL anunciou que não convocaria outras mobilizações. Seus representantes denunciam uma apropriação da revolta pela direita. 'Vimos surgir bandeiras terríveis como a redução da maioridade penal e a probição do aborto', explicou um deles". Rayes faz uma comparação com o maio de 68 francês, que "reforçou o gaullismo". No Brasil, "podemos temer que o avanço das mobilizações sirva para justificar o retorno de um governo conservador, que tiraria o PT do poder".

Dilma, o desamor
De fato, as manchetes que seguem falam da queda de popularidade do governo federal. Sobre a sonora vitória do Brasil contra a Espanha, na final da Copa das Confederações, Le Monde escreve: "O Brasil ganha e a popularidade de Dilma despenca". Le Figaro cita pesquisa do Datafolha que mostra que, no início de junho, o governo era considerado "bom" ou "excelente" por 57% da população, índice que despencou 27 pontos em três semanas. "Isso nos remete a março de 1990, quando o então presidente Fernando Collor lançou um plano de congelamento das poupanças e sofreu queda similar", escreve o jornal.

"A quinze meses da eleição presidencial, a pesquisa altera prognósticos. Se um mês atrás, a reeleição de Dilma Rousseff parecia garantida, hoje sua candidatura é vulnerável, com as intenções de voto, que giravam em torno de 50%, reduzidas a 30%", analisa o texto. Mas o tsunami político foi tamanho, que não escolheu sigla. Todos os partidos se viram obrigados a ceder às demandas das ruas. "O governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) também teve de frear o aumento do metrô. Depois, foi o Rio, governado pelo PMDB. Os três maiores partidos do país, PT, PSDB e PMDB, cederam a um movimento de jovens. Bela vitória para o MPL".

A manchete seguinte do Le Monde diz simplesmente "Dilma, o desamor" e explica na linha fina que a presidenta sofreu "a maior queda de popularidade da história democrática do Brasil. Elogiava-se seu rigor e sua discrição. Hoje, denuncia-se seu autoritarismo e isolamento". O desamor parece ter definitivamente tomado conta da imprensa francesa também.

Dilma, le désamour
"Foi em um cenário um pouco insólito, já que ela apresentava um novo marco regulatório para a exploração mineral, que a presidenta Dilma Rousseff decidiu sair de seu silêncio para 'apoiar' os movimentos sociais que tomam o Brasil depois de vários dias", escreve Le Figaro. Duas semanas depois, ela enfrenta uma greve geral e se vê em uma situação paradoxal, aos olhos do jornal: "os sindicatos protestam com demandas para o governo, mas a força da mobilização popular pode ajudá-la a fazer avançar seu projeto de referendo sobre a reforma política, que acaba de ser enterrado pelos presidentes do Senado e da Assembleia, por razões 'práticas'".

O Libération foi além, em artigo assinado por Gérard Thomas: "Esse pequeno movimento pelo passe livre, nascido durante o Forum Social Mundial de Porto Alegre, em 2005, veio desconstruir subitamente os 'excelentes' indicadores econômicos do arrogante Brasil. E lançou aos olhos do mundo a realidade de uma sociedade violenta e profundamente desigual, apesar dos incontestáveis avanços sociais conquistados pelas administrações sucessivas do PT".

Conforme as manifestações foram se tornando mais e mais esporádicas e grupos radicais como os black blocs passaram a formar a linha de frente de qualquer passeata, os jornais franceses voltaram novamente a atenção à incompetência das autoridades em com o mobilização popular. Em outubro, Le Figaro escreveu que "os governos do Rio de Janeiro e de São Paulo respondem aos levantes radicalizando a repressão, ressuscitam leis da ditadura para atirar agitadores atrás das grades".

O auge da repressão violenta veio à tona conforme a revolta migrou dos grandes centros urbanos. "Bala de borracha para manifestante, bala de verdade para favelado", começa o texto do Le Monde. De acordo com o vespertino, a TV Globo noticiou que "mais ou menos" nove pessoas morreram na favela Nova Holanda em uma única noite. O Libération escreve que o sonho brasileiro - em especial o da tribo Kayapó - está sendo atropelado por tratores, em alusão à construção da hidrelétrica de Belo Monte. A lua-de-mel parece definitivamente acabada.

Extertores de um ano de desilusão
As matérias que seguem na imprensa francesa já não têm a mesma animação de outrora. Se antes, páginas inteiras eram dedicadas à economia brasileira, agora, é mais costumeiro ver nossos números perdidos em meio aos da China, da Rússia, da Índia e da África do Sul. A pacificação das favelas do Rio de Janeiro não engana mais ninguém e os temores de uma ebulição social durante a Copa do Mundo são frequentes.

Nem mesmo a breve visita do presidente francês François Hollande ao Brasil foi suficiente para uma grande cobertura. Na verdade, por aqui houve mais destaque a sua ida à Arábia Saudita do que ao Brasil. No entanto, não se pode dizer que a cobertura foi sempre fria e distante, houve sim alguns respiros. O Libération, por exemplo, fez uma longa matéria mostrando como os médicos cubanos mudaram a realidade de uma série de municípios pobres do Brasil. Le Monde falou do dinamismo do mercado brasileiro de cosméticos. Le Figaro elogiou a retomada da diplomacia brasileira no caso das espionagens norte-americanas. Pouco, para quem, há dois anos, era candidato a potência mundial.

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