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Linha Direta

150 dias: argentinos protestam contra quarentena mais longa da América Latina

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A intolerância social faz ruir a quarentena argentina, a mais longa e uma das mais rígidas da América Latina, única estratégia adotada pelo governo para conter a epidemia de coronavírus no país. Mesmo assim, a multiplicação de casos começa a sair de controle, sob ameaça de saturar o sistema de Saúde, e afetando a imagem do presidente Alberto Fernández.

Manifestação contra as medidas de segurança sanitária aplicadas na Argentina. Buenos Aires, 9 de julho de 2020.
Manifestação contra as medidas de segurança sanitária aplicadas na Argentina. Buenos Aires, 9 de julho de 2020. AFP/File
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Correspondente da RFI em Buenos Aires

Os argentinos aproveitam o dia do libertador do país, o general San Martín, para gritarem simbolicamente por liberdade contra a quarentena que completa 150 dias, a mais prorrogada da América Latina, o que impõe um alto custo econômico, social e até mesmo psicológico para o país.

O protesto desta segunda-feira (17) também pretende defender as instituições republicanas contra uma Reforma Judiciária que, na opinião dos manifestantes, foi feita sob medida para livrar a vice-presidente Cristina Kirchner de processos por corrupção. Isso quando o país tem outras prioridades.

A deterioração social também elevou o nível de violência no país. Na área metropolitana de Buenos Aires é registrado um roubo a cada três minutos.

Convocadas pelas redes sociais, as manifestações estão previstas para as 16h nas principais praças de todo o país, com maiores concentrações no Obelisco do Centro de Buenos Aires, na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada e em frente à residência oficial de Olivos.

Depois de cinco meses da apelidada "quarenterna" (quarentena eterna), os argentinos demonstram intolerância às medidas de segurança sanitária, justamente quando a curva de contágios aumenta diariamente, elevando também o número de mortos.

"Do ponto de vista social, o protesto é uma imensa irresponsabilidade, motivada por um setor extremo da oposição, que usa a pandemia para fazer política", revela à RFI o analista político Raúl Aragón, para quem a manifestação tem efeitos ambíguos para o governo.

"Por um lado, um protesto maciço contra um governo nunca é bom, politicamente. Por outro, reforça o discurso de Fernández de jogar a culpa do aumento de contágios na irresponsabilidade social", observa Aragón.

Sintomas de esgotamento social

Uma pesquisa do Instituto de Neurologia Cognitiva (Ineco) conclui que, no país, de cada dez jovens, oito apresentam sintomas de depressão e ansiedade. A proporção é menor no caso dos adultos (seis de cada dez), mas os resultados são cinco vezes mais altos do que os registrados antes da pandemia.

"Não vamos poder ficar numa quarentena eterna. A quarentena serve para testar, rastrear, isolar e melhorar o sistema de Saúde, mas, se não podemos fazer isso, seria melhor mudar de estratégia", aponta o neurologista Facundo Manes, coordenador do estudo.

De acordo com uma sondagem da consultoria Synopsis, seis de cada dez argentinos estão mais preocupados com a situação econômica do que com o coronavírus e querem mais flexibilização na quarentena que, na última sexta-feira (14), foi renovada pela décima vez, até dia 30 de agosto pelo menos.

Nos últimos dias, o presidente Alberto Fernández passou a negar que o país esteja em quarentena, uma vez que, em sua opinião, as pessoas não cumprem com o confinamento. Ao mesmo tempo, Fernández passou a atribuir a culpa do aumento no número de casos à essa falta de engajamento da população.

"Se houvesse tolerância social para uma rigidez maior, o governo endureceria a quarentena. Mas como se sabe que não há margem, o governo diz agora que a quarentena praticamente não existe mais. Ficou muito difícil mantê-la neste contexto atual", afirma Raúl Aragón.

Refém da quarentena

O presidente Alberto Fernández parece olhar para vizinhos como Brasil, Chile e Peru e ver o que a Argentina não quer ser. Ele parece preferir pagar o preço de destruir a economia, mas salvar o máximo de vidas possível. A Argentina tem 5.700 mortos, 19 vezes menos do que o Brasil, enquanto a população do país vizinho é cinco vezes menor. A taxa de letalidade na Argentina é de 1,9% contra 3,2% no Brasil.

Mas essa escolha, claro, tem um preço para a economia. Enquanto o Brasil apresenta uma retração de 11% do PIB no segundo trimestre, a Argentina deve recuar o dobro. O mercado brasileiro projeta uma queda de 5,6% no ano para o PIB, quando o argentino prevê uma contração de 12,5% em 2020.

A Argentina é um dos países que menos testa para a Covid-19 na região, só superando a Bolívia, Equador, Guiana e Suriname, países com frágil sistema de Saúde.

"O governo está numa armadilha. O erro foi usar a quarentena como único recurso para controlar a pandemia. As medidas acertadas no princípio não foram flexibilizadas para permitir uma abertura parcial combinada com aumento de testes, de rastreio e de isolamento. Não foi feito quando se podia e agora ficou muito difícil", critica Adolfo Rubinstein, ex-ministro da Saúde, do governo Mauricio Macri (2015-2019).

Risco de saturação

"Vemos um crescimento preocupante (do número de casos) na Argentina, que tinha conseguido conter a pandemia no princípio", revelou Carissa Etienne, diretora da Organização Panamericana da Saúde.

Depois de tanto esforço, a Argentina pode ver sua economia destruída em vão. Um relatório da Rede Argentina de Investigadores da Saúde adverte que, com o atual nível de contágio, o sistema de Saúde está perto da saturação.

"O sistema sanitário cresceu muito com a incorporação de leitos e de infraestrutura, mas a porcentagem de ocupação de leitos está em aumento constante. Se continuar assim, o crescimento diário levará a um colapso do sistema", alerta o relatório.

"O governo está decidido a não permitir que o sistema sanitário colapse, porque em um país como a Argentina, onde os setores populares têm uma imensa capacidade de mobilização social e de protesto, se o sistema sanitário colapsar, poderia gerar uma forte tensão social", adverte o analista Raúl Aragón.

Impacto político

O presidente Alberto Fernández tem sofrido uma degradação constante de sua imagem, perdendo a popularidade que havia conquistado com a gestão do início da crise, e voltando ao patamar que tinha ao assumir o cargo em dezembro. De acordo com a consultora Giacobbe, Alberto Fernández perdeu 26,4 pontos de popularidade, somando agora 41,4% de imagem positiva. Um resultado de frágil equilíbrio, se considerado que 39,3% da população o avalia negativamente.

Para a consultora Synopsis, o panorama é ainda pior, em que pela primeira vez a imagem negativa do presidente (43,3%) é maior do que a positiva (40,6%). No final de março, quando o país vivia os primeiros dias da quarentena, a imagem positiva de Fernández chegava a 59% e a negativa tinha caído a 19,8%. A avaliação positiva do governo era de 64,3% e a negativa, de 17,4%. Agora, a avaliação positiva é de 42,1%, abaixo da negativa em 44,3%.

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