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Cuba

Na luta por inclusão, comunidade LGBTQI+ enfrenta Igreja Evangélica em Cuba

Quem vem a Cuba pode se surpreender com as conquistas e a evolução do movimento LGBTQI+ nos últimos anos. Pelas ruas, membros desta comunidade circulam tranquilamente vestindo camisetas estampadas com a bandeira do arco-íris, pessoas trans se misturam ao povo, sem olhares ou julgamentos explícitos. Casos de violência física são raros, já os verbais nem tanto. Mas se a questão evoluiu muito nos últimos anos - especialmente com a recente abertura do governo - o movimento LGBTQI+ tem atualmente um grande inimigo: o braço mais conservador da Igreja Evangélica cubana, que conseguiu impedir, neste ano, que o casamento entre pessoas do mesmo sexo entrasse na nova Constituição do país.

Concentração para a marcha independente do Orgulho Gay em Havana, em 11 de maio de 2019.
Concentração para a marcha independente do Orgulho Gay em Havana, em 11 de maio de 2019. AFP
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Daniella Franco, enviada especial da RFI a Havana

A psicóloga Dachelys Valdés Moreno, de 33 anos, abre a porta de sua casa com o pequeno Pablito, de seis meses, nos braços. Ela e a companheira, Hope, americana, realizaram uma inseminação artificial nos Estados Unidos para poder dar início à família, que jamais cogitou deixar Cuba, mesmo diante das dificuldades enfrentadas. Hope é pesquisadora e seu campo de investigação é justamente o país. “E também gostamos mais daqui”, explica a americana.

Essa família homoparental faz parte das tantas contradições de Cuba, que se moderniza nessa nova gestão, do presidente Miguel Díaz-Canel, eleito em 2018. As duas jovens vivem juntas, têm um filho, se apresentam como esposas, mas não podem se casar por falta de uma lei que permita o matrimônio para todos. No país onde o aborto e a mudança de sexo são procedimentos gratuitos e garantidos pelo governo, mulheres solteiras, por exemplo, não têm direito de realizar inseminação artificial. A filiação de crianças de famílias formadas por pessoas do mesmo sexo também é dificultada pela ausência de lei sobre a questão.

A psicóloga cubana Dachelys Valdés Moreno e o bebê Pablito.
A psicóloga cubana Dachelys Valdés Moreno e o bebê Pablito. Arquivo pessoal

Outra contradição é a ausência de organizações de defesa dos direitos LGBTQI+, não por interferência do governo, mas, segundo Dachelys, “porque a comunidade é desunida e desarticulada”. “O que mais despertou o movimento em Cuba foi a proposta da nova Constituição, no ano passado, cujo projeto inicialmente previa o casamento para todos. Foi a partir daí que os LGBTQI+ começaram a se reunir em prol de uma mesma causa, participando das reuniões para discutir as novas leis”, afirma.

Ao mesmo tempo, a psicóloga também percebeu que esse período importante da comunidade foi “um momento de ruptura, especialmente quando o célebre artigo 68, sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, não entrou no texto final da Constituição”. Segundo ela, por dois motivos: a culpabilização dos próprios militantes pela falta de organização e as desavenças entre as pessoas LGBTQI+ e o Centro Nacional de Educação Sexual (Cenesex), órgão cubano que promove políticas e pesquisas em prol da educação sexual da população, com diversos projetos para a inclusão de pessoas LGBTQI+. Muitos militantes acusam o centro de não ter dado apoio suficiente à proposta do casamento para todos, diante da pressão extrema e da campanha de desinformação realizada pelo braço mais conservador da Igreja Evangélica em Cuba.

O Cenesex, fundado em 1989, é presidido por Mariela Castro – filha do ex-presidente cubano Raúl Castro e sobrinha de Fidel – ela própria bissexual. Integrante do Ministério da Saúde, o centro é reconhecido pela comunidade LGBTQI+ e boa parte das questões relacionadas aos direitos desta minoria evoluíram graças ao trabalho deste organismo. Ele lida, por exemplo, com questões de gênero e bullying nas escolas, promove jornadas contra a homofobia e transfobia, e tem até mesmo sua própria Parada Gay. Também trata de outras questões relacionadas à evolução da sexualidade na sociedade cubana e dos direitos das mulheres.

“Com certeza o trabalho do Cenesex é muito positivo. O problema é que esse é um país onde durante tantos anos a comunidade LGBTQI+ não teve tantos direitos nem o protagonismo que tem hoje. Então se exige deste organismo cada vez mais mudanças e mudanças cada vez mais rápidas. Afinal, o Cenesex é visto como uma ponte entre nós e o Estado”, enfatiza Dachelys.

Concentração de mlitantes LGBTQI+, antes da Gay Pride independente do 11 de maio de 2019.
Concentração de mlitantes LGBTQI+, antes da Gay Pride independente do 11 de maio de 2019. Arquivo Pessoal/Jancel Moreno

Trágico 11 de maio

O problema é que essa ponte nem sempre une as margens opostas. No último mês de maio, sem dar explicações, o Cenesex cancelou a Gay Pride que organiza há alguns anos na capital Havana. Como resposta, nas redes sociais, militantes se articularam para realizar uma marcha no mesmo dia da Festa Pela Diversidade, em 11 de maio, também promovida por esse órgão do governo na capital. O resultado foi que o evento independente percorreu míseros metros: a polícia foi enviada para dispersar a manifestação, sob forte violência.

O militante Jancel Moreno, de 20 anos, administrador da página contra a homofobia “Dame La Mano”, no Facebook, estava na marcha. Segundo ele, o governo utilizou estratégias para convencer os militantes a trocar a manifestação independente pela Festa da Diversidade do Cenesex, mudando o horário do evento para coincidir com a mesma hora da Gay Pride não-autorizada. “Esse tipo de atitude é muito suja. Porque pensaram que a comunidade LGBTQI preferiria mais ir a uma festa do que manifestar para exigir seus direitos”, afirma.

Jancel Moreno, militante LGBTQI+ e administrador da página contra a homofobia “Dame La Mano”, no Facebook.
Jancel Moreno, militante LGBTQI+ e administrador da página contra a homofobia “Dame La Mano”, no Facebook. Daniella Franco

Ativistas também teriam sido presos e ameaçados antes da marcha, situação pela qual Jancel também passou. “Eu estava no trabalho dia 11 de maio. Quando voltei para casa, encontrei minha mãe e minha irmã, que tem apenas oito anos, chorando porque um agente do Estado foi até onde eu moro me ameaçar. Ele disse à minha mãe que se saísse para ir na parada gay, me prenderiam. Foi terrível!”, relembra.

Mas o jovem afirma ter percebido que não havia policiais nem viaturas perto de sua casa e seguiu para o evento independente, que reuniu cerca de 300 participantes. “Realmente queriam apenas me ameaçar, me assustar”, conta. O resto da história, a imprensa do mundo inteirou noticiou: a marcha de Havana terminou sob uma forte repressão, violência, feridos e prisões.

No entanto, em Cuba, segundo Jancel, os meios de comunicação oficiais tentaram minimizar a importância da manifestação e não mostraram a violência empregada contra os militantes. O jovem também se irrita com a justificativa adotada por Mariela Castro, que, em um programa de televisão, afirmou que o evento teria sido organizado dos Estados Unidos, inimigo histórico de Cuba.

“Esse é o problema aqui: tudo o que fazemos por nossos direitos de forma independente, sem o aval do governo, é atribuído a uma ‘máfia de Miami’, aos antirrevolucionários, a um eterno complô dos Estados Unidos contra Cuba”, reitera.

O militante Jancel Moreno (à direita), na Gay Pride independente do 11 de maio de 2019.
O militante Jancel Moreno (à direita), na Gay Pride independente do 11 de maio de 2019. Arquivo Pessoal/Jancel Moreno

Código da Família

O célebre artigo 68, que legalizaria o casamento entre as pessoas do mesmo sexo, foi retirado do referendo realizado em fevereiro deste ano sobre a nova Constituição de Cuba. Por trás dessa decisão do governo, uma forte pressão da ala mais conservadora das Igrejas Evangélicas – em expansão em Cuba – bem como a resistência de uma parte da sociedade sobre a questão. Do outro lado do fronte, militantes LGBTQI+ reclamam que leis devem ser outorgadas e não plebiscitadas, ainda mais quando se trata de direitos a minorias.

O governo alega que a questão voltará a ser abordada na elaboração do Código da Família, um conjunto de leis à parte da Constituição que deve entrar em vigor em 2021. Já o Cenesex, a quem os militantes da comunidade LGBTQI+ se voltaram para buscar apoio durante os debates públicos sobre a nova Constituição, salienta que o centro não tem nenhum poder de decisão sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. “Essa não é nossa missão, somos uma instituição do Ministério da Saúde. Mas é verdade que, com tudo o que aconteceu, ficou claro que ainda temos muito a trabalhar sobre essa questão”, afirma Ada Caridad Alfonso Rodriguez, diretora de Projetos e Pesquisas do Cenesex.

Ada Caridad Alfonso Rodriguez, diretora de Projetos e Pesquisas do Cenesex.
Ada Caridad Alfonso Rodriguez, diretora de Projetos e Pesquisas do Cenesex. D. Franco/ RFI

A especialista ressalta que, considerando o trabalho que o organismo realiza sobre os direitos sexuais em Cuba, cabe às redes com quem o Cenesex desenvolve atividades para o exercício de cidadania investir em um ativismo mais comprometido para obter a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Código da Família. Também reconhece que imaginou que o caminho para adoção do artigo 68 seria menos complexo, mas obstáculos inesperados apareceram nos debates populares que sacudiram a sociedade cubana.

“Quando essas discussões aconteceram, ficou evidente que o preconceito é ainda importante entre a população. E percebemos esse problema entre os próprios profissionais e as pessoas que lideravam os debates. Algumas igrejas também avançaram muito contra a questão tentando elevar a importância das famílias heterossexuais, como só existisse um tipo de família”, salienta.

De fato, as Igrejas Evangélicas pentecostais, as mais conservadoras, conseguiram dominar o debate e dividir a sociedade sobre a questão. A campanha chamada de “A Família Original” estampou panfletos e cartazes por todo o país. Ao que a comunidade LGBTQI+ respondeu com a iniciativa “Uma Família Muito Original”, mas que, por falta principalmente de verba, não teve tanto alcance.

No entanto, apesar dos percalços, Ada está convicta de que a questão irá evoluir de uma maneira muito mais consistente nos próximos meses em prol da inclusão e da diversidade em Cuba. “Há vários anos um trabalho intenso que continuaremos realizando até a aprovação do Código da Família em 2021. Já existe uma comissão trabalhando em sua redação. Esse grupo é integrado por juristas, que também têm uma consciência de gênero e de direitos humanos, e que poderão dar ao texto uma amplitude muito maior, considerando as demandas das pessoas LGBTQI+ e essa nova realidade de famílias que existe em Cuba”, conclui.

*** Com colaboração de Leslie Salgado

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