Sem distância entre juízes e políticos, não dá para limitar poder dos autocratas
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O procedimento de impeachment contra Donald Trump mostra mais uma vez a importância fundamental para a democracia de uma Justiça independente. Claro, sempre houve manipulação do Judiciário para fins políticos, e a tal de independência nunca é absoluta. Mas daí a que um presidente pressione líderes de países estrangeiros para que investiguem negócios do filho do seu principal adversário eleitoral – e sem nenhuma base jurídica concreta – é dose de engolir. Trump pisou na jaca firme.
Nas sociedades onde as liberdades individuais básicas são garantidas, o poder Judiciário é só um dos pilares da democracia, limitado pelo monitoramento e o poder do Legislativo e do Executivo. Isso é ainda mais verdadeiro no caso dos Estados Unidos, país que tem a mais velha Constituição moderna decidida livremente.
Os pais fundadores da República americana redigiram uma Carta Magna com o objetivo explícito de impedir que um dos três poderes pudesse se sobrepor aos outros. Ainda que esse equilíbrio de poderes torne difícil a ação de qualquer governo. Só que hoje, os modelos democráticos – até os mais avançados – estão em crise. Na América do Norte, na Europa e em várias partes do mundo, os grandes partidos tradicionais estão se fragmentando – e com eles, a representação parlamentar.
As redes sociais, conectando tudo a todos, criaram um sentimento de desconfiança geral em relação às receitas políticas de sempre. A angústia geral frente ao desafio da mudança climática e a velocidade das transformações econômicas e sociais, turbinada pelas novas tecnologias digitais, estão solapando rapidamente o poder Legislativo. Parte dos eleitorados, à procura de um porto seguro, caem no conto da carochinha dos populistas.
Demagogos autoritários estão convencidos que basta ganhar uma eleição nacional para fazer o que lhes der na telha, atropelando o Legislativo, o Judiciário e a liberdade de imprensa. Só o Executivo é visto como poder legítimo: o líder e seus tuítes quotidianos numa relação direta com o “povo” (seja lá o que isto quer dizer). O resto das instituições que se danem. Quem não concordar é imediatamente tratado de “traidor” e “inimigo do povo”.
O problema para o populismo é que não basta aproveitar da deliquescência do poder Legislativo e dos corpos intermediários. Ainda sobra a Justiça. Em todo tipo de sociedade, os juízes têm condições, quando querem ou são corajosos, de brecar iniciativas do Executivo. A grande batalha dos aprendizes a autocrata é tentar fabricar um poder Judiciário às ordens.
Politização da Justiça é velho pesadelo das democracias
Trump passou boa parte dos seus primeiros anos de mandato tentando – e muitas vezes conseguindo – nomear juízes camaradas, afinados com a sua visão. Não só para a Corte Suprema, mas também para as outras instâncias. Na Hungria, Viktor Orbán já foi repreendido pela União Europeia por meter a mão na Corte constitucional – o que também está tentando o Executivo polonês. Recentemente, Boris Johnson no Reino Unido tentou dar um golpe no Parlamento e quebrou os dentes na Supreme Court.
Nos países autoritários, o controle é total. Na Rússia, os candidatos que se opõem a Vladimir Putin estão proibidos de participar até nas eleições municipais. Na Venezuela, Nicolás Maduro estufou a Corte Suprema com fiéis aliados. Na China, não há nem resquício de autonomia da Justiça em relação ao Partido Comunista. A moda agora, em vários países em desenvolvimento na África, América Latina e Ásia é inventar novas Constituições para manter os velhos presidentes no poder.
A politização da Justiça é um velho pesadelo das sociedades que aspiram à liberdade. Sem um mínimo de distância entre juízes e políticos, não há democracia possível, nem possibilidade de limitar o poder dos autocratas. O problema é que quando a autonomia jurídica fica seriamente ameaçada é muito difícil voltar atrás. O Judiciário vira rapidamente campo de batalha entre governo e oposição. E são as liberdades individuais dos cidadãos que vão para espaço.
* Alfredo Valladão é professor do Instituto de Ciências Políticas de Paris e assina uma crônica semanal às segundas-feiras na RFI
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