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Sobrevivente do Holocausto afirma: “A Venezuela era um paraíso”

Gerti Burian é testemunha da História. Sobreviveu ao Holocausto, passou pelos campos de concentração de Terezin, Auschwitz e Bergen-Belsen por ser judia, escapou do comunismo da Thecoslováquia natal, então sob a influência da União Soviética, até chegar, em 1948, à Venezuela.

Gerti Burian, sobrevivente do Holocausto
Gerti Burian, sobrevivente do Holocausto © Elianah Jorge
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Elianah Jorge, correspondente da RFI Brasil na Venezuela

Uma carta-convite enviada por parentes permitiu a ela e ao marido, Francisco, aportar na Caracas “primitiva” de um país em vias de modernização. O espanhol era um idioma desconhecido para ela. Gerti contava com a amabilidade dos venezuelanos. “Fomos recebidos de braços abertos”.

Eles foram beneficiados pela Lei de Imigração e Colonização promulgada pelo presidente Eleazar López Contreras (1935-1941), apesar da proibição da entrada de judeus no país, eles conseguiram uma brecha na lei. Pouco mais de uma década após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a Venezuela passou de cinco milhões a sete milhões de habitantes.  

Falando cinco idiomas, Gerti foi trabalhar na empresa de cruzeiros Grace Line. Seus clientes eram, na maioria, empresários. Zarpar de Caracas a Nova Iorque demorava cinco dias, e vice-versa. Indícios de que o país ampliava negócios com o mundo.

Ao ser liberada do campo de concentração, Gerti pesava 31 quilos e sua família havia sido dizimada durante o Holocausto. Amigos não judeus a abrigaram. “Eles me deram assistência médica, porque tive tifo. Eu também sentia muita fome e comia o dia inteiro”.

Anos depois foi a vez de Gerti retribuir o favor. Ela enviou a carta-convite que outrora recebeu, permitindo aos amigos escapar do regime comunista tcheco. Aqui, eles deram início à Pinturas Montana, uma das maiores empresas do país e “ficaram milionários”.

Venezuela Saudita

No começo do século XX a Venezuela exportava cacau, café e açúcar. Porém, com a lucrativa exploração do petróleo a produção rural minguou. Por décadas a Venezuela ficou entre os cinco primeiros exportadores mundiais de petróleo.

Durante o governo do ditador Marcos Pérez Jiménez (1939-1945), entre prisões e torturas a opositores, o general mandou construir grandes obras, características da modernização da Venezuela.

Entre elas está a Autopista Francisco Fajardo, uma das principais vias expressas de Caracas, palco no último 30 de abril do levante organizado pelos líderes opositores Juan Guaidó e Leopoldo López contra o governo do presidente Nicolás Maduro.

Entre 1960 e 1980, com o aumento da renda per capita graças ao petróleo, surgiu o termo “Venezuela Saudita”, em comparação com a Arábia Saudita, outro membro da Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Porém o país continuava subdesenvolvido.

A moeda venezuelana chegou a valer mais que a norte-americana nos mercados mundiais. No filme “007 contra a Ameaça Atômica” (“Thunderball”), rodado em 1965, o protagonista Sean Connery afirma preferir bolívares a dólares. Hoje em dia o bolívar vale seis mil vezes menos que o dólar. Durante a bonança, Gerti e o marido construíram a casa onde até hoje ela, agora viúva, mora.

Na década de 1980 a economia venezuelana foi abalada pela queda dos preços do petróleo no mercado internacional e pelo aumento da dívida externa e da inflação. No entanto, não se compara à atual inflação. De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) a inflação da Venezuela deve chegar este ano a 10 milhões por cento, a maior do mundo.

Durante o governo de Luis Herrera Campíns (1979-1984), a inesperada desvalorização da moeda nacional foi batizada de Sexta-feira Negra (Viernes Negro) e entrou para a história. “Quando desvalorizaram o bolívar, isso foi um grande golpe para as pessoas. Os preços subiram e os salários, não”, conta Gerti.

Às decisões econômicas aplicadas por Campíns se somaram outras mais rígidas, desta vez impostas durante o segundo governo de Carlos Andrés Pérez (1974-1979 e 1989-1993).

O levante

O resultado foi o levante social “Caracaço”. Nos dias 27 e 28 de fevereiro de 1989 uma multidão enfurecida saiu às ruas. O resultado foi destruição, saques e mortes de centenas de pessoas. "Com Ação Democrática ou Copei (os partidos que por anos se alternaram no governo) havia muita corrupção”, conta Gerti. Carlos Andrés foi destituído do cargo pelo Congresso e, acusado de malversação de 17 milhões de dólares, ficou preso por alguns anos.

Com a Guerra do Golfo (1990-1991), os preços do petróleo voltaram a subir, o que aliviou a economia do país. Mas ainda persistiam focos de conflito social. Motivado a lutar contra a corrupção e o desemprego, o então tenente-coronel Hugo Chávez comandou, em 4 de fevereiro de 1992, um golpe de Estado. Nos dois anos em que esteve preso recebeu visitas e dava entrevistas. Ao ser indultado, pôde se eleger à presidência. Tomou posse em fevereiro de 1999.

“Ele (Chávez) teve a sorte de que os preços do petróleo não paravam de subir. Ele tinha entradas fantásticas e por isso podia comprar o povo”, conta Gerti em uma referência aos programas sociais que mantiveram em alta a popularidade do líder socialista. Estima-se que entre 1999 e 2014 a Venezuela recebeu mais de U$960 bilhões com a exportação do petróleo. Quando Chávez chegou ao poder o barril custava U$11, e em 2011 oscilavam entre U$84 e U$103.

Gerti conta que “a Venezuela primitiva de 1948 começava a ascender graças aos preços do petróleo e pela manutenção (da estrutura produtiva). Agora é o contrário. Cai e cai. Várias indústrias foram embora. O país está em uma situação completamente desastrosa”.

Desde a chegada de Nicolás Maduro ao poder, em 2013, a renda per capita dos venezuelanos passou de U$7.900 para U$2.700, de acordo com o FMI. Em seis anos a Venezuela empobreceu 65%. A situação tende a piorar. Desde abril deste ano o país enfrenta sanções à venda do petróleo. Além disso, os recentes cortes de energia elétrica afetaram a extração petroleira. De acordo com a OPEP, dos 14 países membros da organização, a Venezuela agora ocupa o nono lugar na produção mundial da commodity.

“A Venezuela era um paraíso”, conta Gerti com a primorosa memória de quem aos 98 anos está aprendendo italiano e religiosamente joga bridge uma vez por semana com as amigas.

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