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Chile/ pedofilia

Coragem de vítimas de abusos no Chile levou papa a reação forte no país

Demissões em massa da conferência episcopal, exclusão de diversos padres, pedido de perdão exclusivo para os católicos chilenos: o ano de 2018 foi marcado por uma série de decisões emblemáticas do papa Francisco em relação à igreja católica do Chile, abalada por dezenas de casos de violência sexual. Tais decisões provavelmente jamais teriam sido tomadas sem a coragem e insistência de vítimas, que brigavam há mais de 10 anos por justiça e por mudanças nas práticas.

Fachada da igreja El Bosque, em Santiago.
Fachada da igreja El Bosque, em Santiago. Justine Fontaine
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Justine Fontaine, correspondente da RFI em Santiago do Chile

 

“Agora, é a igreja que está sozinha, e não nós”, conclui James Hamilton, depois de contar mais uma vez o seu combate por justiça. Durante quase 20 anos, ele foi doutrinado, assediado e agredido sexualmente pelo padre Fernando Karadima, da paróquia de El Bosque, um bairro tranquilo de Santiago. O religioso chegou a ter tal poder na vida do garoto que o direcionou até a tomar decisões pessoais, como com quem deveria se casar.  

“As pessoas o chamavam de ‘santinho’”, recorda-se o filósofo José Andrés Murillo, outra vítima de Karadima nos anos 1990. “Eu pensava ter uma vocação religiosa e me aproximei dele. Mas era como uma seita.”

Em 2003, Murillo foi o primeiro a apresentar uma queixa contra Fernando Karadima na justiça canônica – ou melhor, a tentar fazer a denúncia. O seu testemunho foi ignorado pela igreja. Três anos depois, James Hamilton tentou fazer o mesmo, sem sucesso. “O cardeal Francisco Javier Errazuriz advertiu Karadima e deu um jeito para que as queixas não fossem adiante”, afirma Hamilton.

Hostilizados depois das denúncias

Passados mais três anos, Hamilton solicitou a anulação de seu casamento junto ao tribunal eclesiástico – e foi quando as suas denúncias não puderam mais ser desconsideradas. O caso vazou à imprensa e, além de Murillo, uma terceira vítima, Juan Carlos Cruz, se juntou a eles para testemunhar contra o padre abusador.

Durante mais de uma hora, em abril de 2010, os três homens contam em detalhes à televisão chilena o cotidiano de assédio sexual, agressões, manipulação espiritual e psicológica aos quais eles foram alvo enquanto frequentaram a igreja de El Bosque. Porém, depois das revelações, os três passaram a ser hostilizados no bairro e até no trabalho, por ficarem conhecidos como avessos à igreja.

Da esquerda para a direita, Juan Carlos Cruz, James Hamilton e José Andrés Murillo, em uma coletiva de imprensa em Roma, em 2018.
Da esquerda para a direita, Juan Carlos Cruz, James Hamilton e José Andrés Murillo, em uma coletiva de imprensa em Roma, em 2018. AFP/Tiziana Fabi

“Tentaram nos descredibilizar e questionaram as nossas histórias: a de Andres porque ele tem uma história familiar complicada, a de Juan Carlos por ele ser homossexual e a minha porque alegaram que eu estava decepcionado de não ter conseguido me tornar padre”, recorda-se Hamilton. “Mas, aos poucos, o povo chileno se deu conta do que acontecia.”

Os “mentirosos” acabam ouvidos por Francisco

Foi quando os três se tornaram símbolos da luta contra as violências sexuais na igreja, e criaram uma fundação para ajudar menores vítimas de padres. A celebridade os levou a ter certeza de que, durante a visita do papa Francisco ao Chile, em 2018, eles seriam convidados para um encontro com o pontífice. Porém, não foi o que aconteceu. “Ele disse que se reuniu em segredo com outras vítimas, mas não sabemos se é verdade. Jamais soubemos quem poderia ter sido”, relata Hamilton.

Neste mesmo período, o bispo de Osorno, Juan Barros, recebia severas críticas pela suspeita de ter acobertado Karadima durante anos. “Não há uma única prova contra Juan Barros. São calúnias”, afirmou o papa em seu último dia de visita ao país, uma viagem que não gerou uma grande empolgação dos chilenos. A declaração provocou indignação no país.

Algumas semanas depois, o papa voltou atrás e disse ter se enganado. Francisco pediu desculpas às vítimas e enviou emissários especiais ao Chile para investigar o caso Juan Barros. Em maio, ele convidou oficialmente os três homens ao Vaticano.

“Fomos tratados de mentirosos durante anos e, quando o papa nos recebeu, ele nos perguntou quais eram as nossas sugestões para combater os abusos sexuais na igreja”, conta Murillo.

Demissões e exclusões

Pouco tempo depois, os bispos chilenos foram convocados a Roma e pediram demissão em massa. Sete foram afastados de suas dioceses e diversos padres, inclusive Karadima, foram excluídos do clérigo.

Atualmente, 148 investigações estão abertas nos tribunais chilenos, relativas a violências sexuais na igreja. Cerca de 200 pessoas ousaram prestar queixas em todo o país. “Elas formaram uma rede de sobreviventes para tentar conseguir uma reparação pelo que passaram”, nota o historiador Marcial Sanchez, ressaltando que a divulgação do caso chileno em nível mundial se deve, sobretudo à forte mobilização das vítimas.

“O caso chileno não é um caso isolado”, acrescenta Murillo. “A diferença é que, aqui, os casos se tornaram públicos. As vítimas falaram”.  O filósofo está convencido de que as violências sexuais “atingem todos os países nos quais a igreja católica é tão poderosa quanto no Chile”, porque, para ele, o problema está “na estrutura de poder da instituição”.

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