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Depois de 150 anos, abolição da escravidão nos EUA ainda é um processo

"Quarenta acres e uma mula". Não se sabe se esse slogan, popular no final da Guerra Civil americana, foi adaptado de alguma promessa oficial ou se era mero boato. Mas é certo que fez os negros escravizados sonharem.  Eles já sabiam que seriam libertados - como de fato aconteceu, há exatos 150 anos -, quando o norte liberal e industrializado derrotasse o sul escravista e agrário. Mas, por 40 acres (cerca de 16 hectares) de terra cultivável e uma mula, os negros iriam para a linha de frente da guerra. Só que ninguém cumpriu a promessa.

Negros ainda são maioria da população carcerária nos Estados Unidos
Negros ainda são maioria da população carcerária nos Estados Unidos Capture Youtube/ Photograph: Ric Francis/AP
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Quase toda a terra conquistada pelos exércitos da União continuou nas mãos dos mesmos escravocratas de antes da batalha, em um acordo de cavalheiros que manteve as elites... elites. No norte vencedor, os "forty acres and a mule" viraram piada racista: "Esses 'niggers' descalços e maltrapilhos foram ingênuos a ponto de arriscar a vida pensando que podiam se converter de propriedade em proprietário da noite pro dia".

Os confederados sulistas, desmoralizados pela derrota e combalidos pela desestruturação da economia escravista, sentiram que estavam diante de um barril de pólvora. Que reação teriam aqueles negros armados, orgulhosos e vitoriosos, quando soubessem que, abolida a escravidão, não teriam terra nem mula? Pelo contrário, o que o futuro guardava para a maioria daqueles veteranos era a volta às mesmas plantações de algodão, o trabalho (quase) nas mesmas condições deploráveis, para os mesmos senhores de engenho.

A velha elite agrária fez então o que fazem elites em pânico: organizou milícias armadas para "colocar de volta em seu lugar" os negros que mal haviam retornado da guerra. Nasceu a Ku-Klux-Klan. E consolidou-se uma cultura de opressão que levaria a mais de cem anos de segregação institucionalizada, coerção, linchamentos, enforcamentos e assassinatos.

Volta à escravidão no sul, educação ao norte

Se no sul, sobreviver já era pedir demais, no norte, uma intelectualidade afrodescendente conseguiu florescer a duras penas. Na virada do séculos XIX para XX, já havia um número importante de negros dispostos e habilitados a se encarar através do espelho da razão. Um desses intelectuais, W.E.B. DuBois, natural do emblemático Estado de Massaschusets (onde se formou o primeiro regimento negro na Guerra da Secessão), resolveu tratar filosoficamente a dívida que sobrou para o pós-guerra.

O intelectual aprofundou a lógica do célebre abolicionista negro Frederick Douglass, que dizia, já no século XIX, que a "escravidão só terminará quando o negro tiver uma cédula eleitoral". Ou seja, pensou DuBois, a abolição só será completa se a sociedade for capaz de suplantar as condições de existência da escravidão. Em outras palavras, não basta retirar os grilhões do escravo, é preciso criar mecanismos para que ele inicie uma vida autônoma. DuBois poderia chamar essas condições de "quarenta acres e uma mula", mas preferiu "democracia da abolição".

Como explica a professora, ativista e ícone do movimento radical pelos direitos civis Angela Davis, no livro "Abolition Democracy" (2005) "não basta - e talvez nem seja essencial - a abolição como processo negativo de destruição, mas de construção de novas instituições". O problema é que estas instituições não foram criadas. O que se criou, como explica Davis, foram "novas formas de escravidão", como a "servidão por dívida, a pena de trabalho forçado, a educação segregada e de baixa qualidade".

Assassinatos em série

Os sintomas desta extensão crônica da escravidão são claros e foram apontados por discípulos de DuBois, Douglass, Marcus Garvey e outros líderes durante todo o século XX. Martin Luther King Jr. sonhou em 1963 com o dia em que todos seriam "iguais perante a lei" nos Estados Unidos. Mas ainda hoje, os negros - que não passam de 12,6% dos americanos - compõem quase 40% da população carcerária. E Martin Luther King Jr. foi assassinado em 1968.

Em 1959, Malcolm X já denunciava que os Estados Unidos foram fundados no estupro colonial. Hoje, uma em cada seis mulheres negras é estuprada antes de completar 18 anos e quase 20% de todas as vítimas de violência sexual nos Estados são mulheres negras. Malcolm X foi assassinado em 1965.

Apesar de o pantera negra Huey P. Newton ter exigido, em 1966, o fim da violência policial contra a comunidade negra, é sobre os afrodescendentes que recai a maior parte da ira da polícia norte-americana. Só neste ano, mais de 270 negros morreram em ações das forças da ordem e 33% deles comprovadamente desarmados. Um negro tem três vezes mais chances de morrer nas mãos da polícia do que um branco. E Huey P. Newton foi assassinado em 1989.

Claro, há quem vá dizer que os Estados Unidos são governados pelo negro Barack Obama, que negros riquíssimos dominam as indústrias do esporte e da música, que há até uma Oprah Winfrey - mulher, negra e bilionária atestada pela Forbes. Mas o fato é que 40 acres e uma mula ainda mudariam a vida da imensa maioria dos afroamericanos.

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