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Ruanda/ genocídio

Sobreviventes do genocídio de Ruanda lembram horrores do massacre

Caça de pessoas até dentro de suas casas, corpos dilacerados pelas ruas, uso do aparato do Estado para promover o extermínio de um povo. O último genocídio do século 20 completa 25 anos neste domingo (7) e Ruanda ainda se esforça para se reconciliar com o passado. Com exclusividade à RFI, sobreviventes do massacre da etnia tutsi relembram os horrores do extermínio de pelo menos 800 mil pessoas.

Imagens das vítimas, doadas por sobreviventes, em uma parede dentro do Memorial do Genocídio em Gisozi, em Kigali, Ruanda 3/04/ 2019
Imagens das vítimas, doadas por sobreviventes, em uma parede dentro do Memorial do Genocídio em Gisozi, em Kigali, Ruanda 3/04/ 2019 REUTERS/Jean Bizimana
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Em menos de três meses, três quartos da população tutsi e hutus moderados foram dizimados pelo regime extremista dos hutus, entre 7 de abril de 1994 e meados de julho de 1994, em uma matança de uma violência macabra. Até hoje, as terras ruandesas continuam a revelar corpos que sequer foram enterrados.

Para conseguir seguir em frente depois do que viu e viveu, o escritor Charles Habominama encontrou o reconforto na escrita. Em Tu seras le dernier Tutsi, ele conta o que viveu.

“Eu só queria ser morto também, porque todos os meus camaradas, a minha família, os meus amigos e meus vizinhos, todos os anciãos do vilarejo que eu considerava sábios, estavam todos na minha frente massacrados”, relata Habominama. “Eu queria que eles me matassem a machadadas também, porque o meu amigo Toto estava ali todo cortado por machado. Ele era um grande amigo. Nós compartilhamos tudo desde a infância.”

Crânios das vítimas em exposição dentro do Memorial do Genocídio em Gisozi, em Kigali, Ruanda, 3 de abril de 2019.
Crânios das vítimas em exposição dentro do Memorial do Genocídio em Gisozi, em Kigali, Ruanda, 3 de abril de 2019. REUTERS/Jean Bizimana

Grupo de apoio une sobreviventes e carrascos

A psicoterapeuta Emilienne Mukansoro perdeu os pais e oito irmãos. Ela só teve coragem de retornar à sua antiga casa há quatro anos – Emilienne ainda temia a reação dos seus vizinhos, que no passado foram capazes de entregar a sua família para os carrascos.

“Não tenho mais primos nem tios, mas tenho irmãs. Elas eram pequenas e eu as reencontrei muito tempo depois, em orfanatos”, conta, em entrevista ao enviado especial da RFI ao país, Pierre Firtion. “Eu aguentei coisas das quais eu não consigo falar até hoje. Até que um dia tomei uma decisão: quero viver, e quero viver para ajudar os que passaram a mesma coisa que eu.”

A psicoterapeuta então abriu uma associação de apoio psicológico para sobreviventes e ex-milicianos que participaram do massacre. Em uma pequena sala, vítimas e assassinos se encontram face a face para superar a tragédia, uma vez por mês. Todos carregam nos rostos as marcas da tragédia. O início dos encontros sempre é difícil – mas no final, os participantes acabam por se abraçar.

Emannuel não sabe quantas pessoas matou naqueles 100 dias e, desde então, não conseguia sequer ter empatia pelos sobreviventes. “Antes, quando eu via um sobrevivente na rua, eu fugia, porque os via como animais. Mas depois de sentar ao lado deles e poder conversar, eu os sinto próximos.”

Origem do genocídio

O assassinato em 6 de abril de 1994 do então presidente ruandês, o hutu Juvénal Habyarimana, foi o que deflagrou o extermínio dos tutsis. No dia seguinte, as Forças Armadas Ruandesas (FAR) e os milicianos hutus Interahamwe, fanatizados após anos de propaganda contra os tutsis, deram início aos massacres.

Os assassinatos se estenderam a todo país. Incitadas pelas autoridades e pela "mídia do ódio", todas as camadas da população se entregaram à causa. Homens, mulheres e crianças foram exterminados a golpes de machado, inclusive dentro das igrejas onde buscaram refúgio.

O massacre só teve um fim quando a rebelião tutsi da Frente Patriótica Ruandesa (FPR) conquistou Kigali, em 4 de julho, desencadeando o êxodo de milhares de hutus atemorizados para o vizinho Zaire (atual República Democrática do Congo).

Lembrança ainda presente

Para os mais de 12 milhões de ruandeses, este período anual de recordação é muito sombrio. O tema dos atos deste ano é "Recordação, unidade e renovação", e a ênfase é colocada na juventude, que não viveu o genocídio, mas ainda sofre as consequências.

Em questão de uma geração, Ruanda conseguiu evoluir muito, ao se tornar um polo de estabilidade política que foi capaz de transformar um país em ruínas em uma economia robusta, com uma certa coesão social. Na busca pela reconciliação, a Justiça desempenhou um papel fundamental. Dezenas dos responsáveis pelo genocídio foram condenados pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR), e cerca de dois milhões de ruandeses foram julgados por tribunais populares, os "gacaca".

O "gacaca" foi baseado no princípio da confissão. Mas, em alguns casos, a ausência de remorso e o não pagamento das devidas indenizações por propriedades saqueadas ou destruídas têm sido obstáculos para a reconciliação.

Paz social de fachada

Os ruandeses não escondem que seu país ainda tem um bom caminho a percorrer até que recupere totalmente a tranquilidade. Para os críticos do governo, o consenso social nada mais é, porém, do que uma fachada, que esconde o controle total do regime sobre a população.

"Assegurada por uma estrutura política e administrativa onipresente, a 'reeducação' autoritária e a 'reconciliação' de um povo dividido e traumatizado pela guerra e pelo genocídio agora prevalecem em todos os domínios de atividade", diz o pesquisador francês André Guichaoua.

França vai reabrir acervos

O presidente francês Emmanuel Macron anunciou, nesta sexta-feira (5), a criação de um comitê de historiadores que terá acesso a "todos os arquivos franceses" sobre o período 1990-1994 para esclarecer o papel desempenhado por Paris durante o genocídio em Ruanda. Entre os integrantes, não há ruandeses: apenas reconhecidos especialistas internacionais em genocídios. Macron recebeu no palácio do Eliseu membros da associação Ibula France, dedicada ao "apoio aos sobreviventes e à memória" da tragédia".

"Esta comissão, de oito investigadores e historiadores, será liderada pelo professor Vincent Duclert e terá como missão consultar o conjunto de arquivos franceses relacionados ao genocídio, no período 1990-1994, para analisar o papel da França (...) e contribuir para um melhor entendimento do genocídio dos tutsis", segundo um comunicado do palácio presidencial.

Além disso, Macron anunciou um "reforço" dos meios judiciais e policiais para acelerar as ações penais contra pessoas suspeitas de participação no genocídio em Ruanda e que estariam na França. O objetivo é fazer com que esses suspeitos "sejam julgados num prazo razoável", aponta o comunicado.

Com informações da AFP

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